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domingo, 22 de dezembro de 2024

Rebelião escrava nos sertões diamantinos -Isadora Moura Mota

  Rebelião escrava nos  sertões diamantinos  Isadora Moura Mota 

“[...] é que havia guerra a respeito da liberdade dos escravos mas não deste País.” Adão, líder da insurreição do Serro, referindo-se à Guerra Civil nos Estados Unidos, em 18641 Comarca do Serro, outubro de 1864. “À sombra dos últimos acontecimentos, escravos do norte de Minas Gerais azeitavam os preparativos finais da ‘guerra contra os brancos’ que pretendiam travar em nome de sua liberdade. Pelas senzalas do Serro e Diamantina, corria à boca pequena que os liberais estavam dispostos a avançar negociações para extinguir o cativeiro e alguns escravos estavam certos de que seus senhores escondiam uma ordem de emancipação conquistada através de uma guerra no exterior. Cerca de 400 insurgentes estavam combinados de se reunir no último domingo de outubro em frente da igreja do Rosário, localizada na parte alta da cidade do Serro. Da igreja, planejavam descer ao centro munidos de tochas e armas de fogo para provocar um incêndio nas casas dos mais ricos negociantes de diamantes da região. Quando o povo viesse acudir o incêndio, a ordem era invadir o quartel da Guarda Nacional para tomar todo o armamento que pudessem encontrar. Tal armamento, diziam os escravos, os ‘tornaria invencíveis’.”2 Artesãos crioulos de uma fazenda serrana de aguardente lideraram um grupo diverso de escravos, libertos e quilombolas recrutados, sobretudo, nas lavras diamantinas que entrecortavam as margens do Rio Jequitinhonha. A brutalidade do regime de trabalho em uma terra de mineração intensiva era, com certeza, motivo suficiente para revolta, mas a rebelião escrava de 1864 nada tinha da espontaneidade e primitivismo que a elite local atribuía às lutas negras. Assim como seus pares espalhados pelo Atlântico, os rebeldes mineiros eram versados na cultura política da chamada “Era da Emancipação”, período delimitado pela independência do Haiti, primeira república negra das Américas, e pela abolição da escravidão no Brasil, em 1888. Em uma época curiosa na qual o fim da escravidão caminhava lado a lado com a crescente lucratividade do trabalho escravo, em países como o Brasil não restavam dúvidas de que a abolição estava longe de ser fato inevitável. Para os escravos de Serro e Diamantina, a guerra civil norte-americana e os debates sobre a emancipação no parlamento brasileiro cheiravam a liberdade, mas uma insurreição era a opção para os que quisessem dar sentido concreto à vida fora do cativeiro. Apesar do planejamento iniciado em maio de 1864, nada ocorreu conforme o esperado. Em 9 de outubro, o escravo Vicente contou ao seu proprietário Francisco Cornélio Ribeiro que mais de 150 cativos preparavam uma rebelião. Entre eles estava o alfaiate Adão, um dos primeiros escravos a serem presos no Serro. Passando por uma das fontes da cidade, Adão declarara publicamente “como por graça” que todos os escravos ficariam logo forros, porque os rapazes da fazenda Sesmaria “estavam para fazer um alevante (sic) em favor da Liberdade, segundo as notícias que liam nas Folhas”.3 Avisado sobre a gravidade da insurreição, o chefe de polícia de Minas Gerais se deslocou para a comarca do Serro acompanhado por centenas de tropas, dando início ao esforço repressivo que levou mais de dois meses para desarticular o foco do movimento, que acabou por eclodir no povoado de São João da Chapada. Para surpresa de seus senhores, os escravos em rebelião pareciam saber até sobre a Proclamação de Emancipação assinada pelo presidente Abraham Lincoln em 1863. Durante a década de 1860, tanto a guerra civil nos Estados Unidos quanto o conflito entre Brasil e Paraguai conferiram nova legitimidade ao protesto escravo e influenciaram uma onda inédita de levantes por toda a província de Minas Gerais.

Arraial do Tejuco - 

www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm.pdf/2014A07.pdf

  Muitos deles foram instigados por escravos com acesso à escrita que trabalhavam tanto em atividades voltadas para a economia interna quanto para o exterior. O presente artigo conta a história da rebelião de 1864 em busca de pistas sobre o papel da imprensa e da alfabetização escrava no processo de resistência negra ao cativeiro durante a segunda metade do século XIX. Caminhando no terreno das relações entre o protesto escravo e a vida política do Segundo Reinado, esperamos contribuir para uma narrativa sobre as últimas décadas da escravidão que inclua o que pensavam os cativos da província com a maior população escrava do Brasil. O cenário no terceiro quartel do século XIX, a comarca do Serro era composta pelos municípios de Serro (antiga Vila do Príncipe), Diamantina (antigo Arraial do Tijuco) e Conceição. Incrustadas na zona do Alto Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, suas terras guardavam limites com as províncias do Espírito Santo e da Bahia, beirando as encostas da Serra do Espinhaço. A região apresentava uma economia diversificada e intensamente dependente do trabalho escravo, na qual a extração de diamantes predominava sobre a agricultura mercantil voltada para o mercado regional. As fazendas de cultura espalhavam-se por todo lugar, enquanto as lavras estendiam-se, sobretudo, pelos leitos fluviais e dorsos das elevações ribeirinhas nos arredores de Diamantina.4 Inserida nas cadeias mercantis da economia mundial, Diamantina ocupava, em 1864, o posto de maior produtor de diamantes brutos do mundo e devia tal produtividade ao emprego massivo de mão de obra cativa e à privatização da exploração do diamante.5 Confrontado com a penúria de uma população que vivia da mineração e, em 1832, perdera os poucos campos cultivados com alimentos durante uma terrível seca, o intendente dos Diamantes concedeu aos faiscadores (pequenos mineradores) o direito de explorar alguns terrenos já lavrados, reservando outros como sendo de utilidade nacional. Negociantes abastados arremataram os lotes mais ricos e garantiram a exploração de veeiros minerais subterrâneos com o emprego de máquinas a vapor e de centenas de escravos. De acordo com os valores per capita dos diamantes exportados por Minas Gerais, entre os anos de 1819 e 1854, a produção diamantífera na província cresceu em 334%.6 Esses dados estatísticos revelam a importância de Diamantina para a economia em meados do século XIX. A queda da produção de diamantes a partir de 1870 parece ter apagado a memória desse surto econômico em boa parte da historiografia mineira, levada a projetar sobre a região o cenário de decadência que caracterizou o fim do século XVIII. Nos idos de 1860, a força da economia extrativista era tamanha que garantiu o afluxo continuado de escravos centro-africanos para Diamantina e a criação de novos povoados nas margens do Jequitinhonha à medida que faiscadores descobriam novas reservas diamantíferas.7 A população do Alto Jequitinhonha cresceu em sintonia com seu vigor econômico. Em 1856, a cidade do Serro possuía 10.584 habitantes.8 Se somados todos os distritos que compunham as cinco freguesias circunvizinhas à cidade, a população do município chegava a 44.562 habitantes, dos quais cerca de 20% eram escravos.9 Em Diamantina, existia em 1832 uma população de 12.354 pessoas, na qual os cativos figuravam como maioria, compondo cerca de 56% da população. Somados, eles perfaziam o total de 6.617 indivíduos, divididos quase igualmente entre africanos e negros nascidos no Brasil.10 Duas décadas mais tarde, em 1856, estimava-se que a população total do distrito de Diamantina chegasse a 17.000 habitantes em cifras calculadas pelo vigário local, não havendo números precisos quanto à participação dos escravos.

Mais de dez anos após a extinção do tráfico negreiro, os escravos eram ainda maioria no trabalho de exploração do diamante em Diamantina. Em janeiro de 1863, o relator de contas da Câmara Municipal da cidade, José Ferreira de Andrade Brant, assim informou o governo da província de Minas sobre o estado da atividade extrativa: [...] Que cerca dos diversos pontos relativos à mineração deste município, a câmara informa-se (sic) ao Exm. Governo o seguinte: quanto ao 1°, que o diamante, ouro e ferro são os únicos minerais extraídos no município; e ao 2° que a quantidade do diamante anualmente extraída é de 2.000 oitavas aproximadamente; a do ouro, cuja mineração não é especial, orça de 15 a 20 mil oitavas; e a do ferro em 2 mil arrobas mais ou menos, porque apenas existem 6 fábricas neste município; que as máquinas empregadas, à exceção de duas de vapor de pequena força e de algumas bombas de ferro, ainda são as do antigo sistema. Ao 4° quesito orça a comissão o número de trabalhadores mineiros em 12 mil; dois terços escravos e um de pessoas livres, compreendendo administradores e feitores, oficiais mecânicos e faiscadores.12 O crescimento demográfico e a explosão da produção de diamantes corresponderam ao acirramento dos conflitos sociais na comarca do Serro. Não havia regularidade na concessão de licenças para extração, tampouco consenso entre a população sobre a melhor forma de regulamentá-la. De 1840 até o fim dos anos 1860, a região foi varrida por uma sucessão de ocupações e sangrentos combates nas lavras, protagonizados por uma população despossuída – quase sempre de cor – em busca de terras para minerar. Na década de 1860, faiscadores livres e escravos constituíam o grupo mais temido pela polícia, sempre atenta à contínua participação de cativos em ocupações de terras, assim como ao envolvimento de faiscadores e comunidades quilombolas em revoltas escravas. A disputa por terra era a causa que unia a todos, reforçando os laços de parentesco já existentes e as trocas que esses grupos realizavam no âmbito da economia informal. Foi exatamente nesse cenário de lutas e questionamento do direito de propriedade que os escravos da comarca do Serro planejaram rebelar-se. Antecedentes Entre 1860 e 1864, o Ministério da Justiça do Império registrou a ocorrência de 63 insurreições escravas no Brasil.13 Número subestimado, já que nele não se encontram incluídos os diversos planos frustrados e as fugas coletivas realizadas com sucesso em todo o país. Nessa contagem oficial, a revolta do Serro de 1864 mereceu registro das fontes do governo e ganhou espaço na obra de importantes historiadores do protesto escravo. A primeira narrativa do levante apareceu em Rebeliões da senzala e nasceu da interpretação de Clóvis Moura sobre os autos criminais de 1864 publicados por P. de Carvalho Neto no Recife.14 Moura situou o movimento na continuidade da tradição de lutas escravas em Minas Gerais desde o século XVIII e destacou o papel central dos quilombolas na articulação da revolta. Sua assertiva de que o levante teria sido o mais bem organizado pelos escravos mineiros na história definiu os parâmetros de todas as menções posteriores sobre o evento, que podem ser encontradas nos panoramas das rebeliões brasileiras elaborados por Luís Luna, José Alípio Goulart e Waldemar de Almeida Barbosa.15 Se a insurreição do Serro foi, de fato, a mais bem planejada revolta escrava realizada em Minas no século XIX é difícil dizer. Ainda são poucos os estudos de caso sobre esses movimentos na província, especialmente no tocante à segunda metade do Oitocentos. É certo, porém, que o levante de 1864 se insere numa longa tradição de protesto em Minas Gerais, que abarca,

por exemplo, diversos levantes ocorridos na década de 1830.16 Marcos Ferreira de Andrade estudou a fundo a rebelião dos escravos da família Junqueira em Carrancas, centro-sul mineiro, no ano de 1833. Analisando a conjuntura política do período regencial, Andrade investigou seus desdobramentos sobre a política escrava e deu a conhecer um movimento que refletia a predominância africana nas fazendas da região, sem excluir a aliança com os crioulos.17 Do mesmo modo, em 1835, escravos centro-africanos de Mariana e Ouro Preto trocaram cartas na organização de uma revolta em que esperavam arregimentar forros e homens livres pobres para matar seus senhores e invadir a Casa do Tesouro Público na capital da província de Minas.18 As preparações para a insurreição do Serro começaram em maio de 1864, quando da chegada de João Antônio dos Santos, novo bispo de Diamantina. Nas vésperas da sagração do prelado, cativos de Serro e Diamantina realizaram a primeira de muitas reuniões convocadas para discutir um plano de fuga coletiva em direção ao sertão de Minas.19 Sob o comando de José Cabrinha, Nuno e Adão, reuniu-se uma vasta gama de cativos com ofícios especializados, atuantes nos meios urbano e rural. Os rebeldes trabalhavam como alfaiates, escravos domésticos, pedreiros, tropeiros, mineiros, sapateiros, marceneiros e carpinteiros, além de um ferreiro. A predominância de escravos qualificados entre os rebeldes se explica pela rotina de trabalho que os colocava regular[1]mente em contato entre si, já que eles circulavam entre diversas propriedades e eram rotineiramente alugados para o desempenho de serviços entre o Serro e Diamantina. Deslocados pelos senhores, acabavam por ampliar suas redes de relações e laços de solidariedade junto a outros cativos, nas cidades, fazendas e lavras. Indo trabalhar num domingo na Sesmaria, uma das diversas fazendas produtoras de aguardente do arraial do Rio de Peixe, na comarca do Serro, o ferreiro Nuno pediu ao escravo Demétrio que chamasse seus parceiros da Sesmaria para uma conversa. Reunidos num quarto da escola da fazenda, os escravos debateram as possibilidades de sucesso da fuga para o sertão, mas logo surgiram argumentos em favor de uma rebelião. Dirigindo-se ao carpinteiro José Cabrinha, Nuno “contara a notícia que vinha dos jornais a respeito da guerra, e disse-lhe que tinha vindo ordem para a liberdade dos escravos, e que os brancos estavam escondendo essa ordem”.20 A fuga parecia-lhe uma boa opção, mas considerava que “melhor seria fazer uma porcaria na Cidade do Serro com a rapaziada”.21 Cabrinha respondeu ter ainda “coisa melhor”, dizendo que “pela leitura que tinham das folhas, viam que os liberais tratavam da liberdade dos escravos, e que por isso deviam estes tratar de havê-la imediatamente por suas mãos”.22 Convencidos de que a emancipação estava a caminho, os escravos presentes decidiram pela insurreição. Nuno afirmou que só podia arranjar uma boa porção de escravos pelas oito léguas em redor do Serro, mas, conhecendo a boa vontade de seu parceiro José Cabrinha, sugeriu-lhe que viesse à cidade conversar com Adão, que era “um rapaz astucioso, e armático”.23 Na visão de José Cabrinha, a reunião de domingo na fazenda Sesmaria havia sido um sucesso. Certo do apoio de um número cada vez maior de escravos, ele logo enviou uma carta a Adão por intermédio do escravo Leonel, dizendo que a “rapaziada” já estava pronta e que tinha boas notícias de Diamantina. O próprio Leonel, empregado no serviço doméstico da Sesmaria, hesitara por um instante quando convidado por Cabrinha, pensando nas dificuldades para a realização de uma rebelião. Acabou cedendo diante da insistência de Cabrinha, que o insultara, comentando que “a rapaziada de hoje, não era como a antiga, e que estava muito civilizada”.24 Muitas outras cartas foram trocadas entre os rebeldes nos meses de setembro e outubro de 1864. José Cabrinha era o principal autor das missivas que foram enviadas por meio de Timóteo também para Nuno na fazenda Liberdade, propriedade do delegado da cidade do Serro. É interessante notar que os portadores das cartas – Leonel e Timóteo – eram escravos que trabalhavam com José Cabrinha nas várias partes da fazenda da Sesmaria, sendo eles pertencentes a diferentes membros da família Fonseca. Francisca de Araújo Padilha, proprietária de Cabrinha e Demétrio, era mãe de Gabriel de Araújo Fonseca, senhor de Timóteo, e tia de Cândida Orlinda da Fonseca, proprietária de Leonel. Entre os aliados dos rebeldes, estavam os escravos que viviam no quilombo do Buraco do Facho, nos arredores de Diamantina, e faiscadores pauperizados pela concentração de terras diamantíferas nas mãos de grandes proprietários. Em 1864, a comunidade livre de cor em muito ajudou os escravos a conseguir armamento e espalhar a notícia da insurreição, servindo como ponte de comunicação entre as cidades e as matas da comarca do Serro. Eram homens e, sobretudo, mulheres, empobrecidos, por vezes de ascendência africana, que não haviam ascendido socialmente e continuavam a desempenhar ocupações lado a lado com escravos. Além de minerar, libertos e cativos buscavam lenhas nas matas, dormiam nos ranchos da beira dos rios diamantinos, frequentavam as mesmas vendas, compareciam às mesmas igrejas e pertenciam a irmandades locais. Ainda que misteriosos sobre suas companheiras nas senzalas, os escravos do Serro falaram abertamente às autoridades sobre os contatos estreitos que mantinham com mulheres libertas naturais do município. A Eva Joaquina de Campos, por exemplo, Adão confiou a notícia de “que havia guerra a respeito da liberdade dos escravos mas não deste País”.25 Muitas dentre elas operavam como “falas” dos quilombolas, ou seja, informantes que alertavam os escravos fugidos sobre a organização de expedições de combate, transmitiam notícias diversas ouvidas pelas cidades, mantinham com eles relações comerciais ou ofereciam refúgio, quando necessário. E diga-se ainda que diversas forras habitavam os quilombos da periferia de Diamantina, vivendo sob a liderança da “rapaziada sujeita das matas”.26 A rebelião Ainda que denunciada pelo escravo Vicente a seu amo, no início de outubro, a revolta estourou nas lavras diamantinas do Arraial da Chapada, a 30 quilômetros de Diamantina. Após realizar várias prisões no Serro, o juiz municipal de Diamantina, Bernardino José Pereira de Queiroz, encontrou as famílias de São João aterradas não apenas com a notícia do levante, mas igualmente com a movimentação de negros desconhecidos que rondavam armados pelos arredores da povoação. Antes mesmo do fim do mês, Queiroz comunicou ao presidente da província de Minas que não havia razão para otimismo: [...] ficou evidente que a insurreição se acha ramificada neste Município (Diamantina), sendo o seu mais temível núcleo a lavra do Barro, onde existem reunidos para mais de 400 escravos em uma circunferência menor de vinte mil braças, os quais além de acharem-se quase à fala dispõem de meios pecuniários pela riqueza da referida lavra.27 Tamanho número de escravos pertencia tanto aos serviços do Barro quanto à Lavra do Duro. Cerca de cem praças da Guarda Nacional levaram dois meses para prender os escravos do tenente-coronel Felisberto Ferreira Brant e de Rodrigo Souza dos Reis que haviam ocupado as lavras e ocultavam armas. O delegado João Raymundo Mourão desconfiava que eles andassem sempre “dinheirosos” e logo descobriu, com a prisão da quilombola Vitória da Costa, que os escravos das lavras tinham comunicação permanente com os quilombolas dos subúrbios de Diamantina. Vitória havia sido convidada para a rebelião na rancharia do Barro, onde escutara dos cativos Lucas e Cesário que “eles estavam para ficarem livres, e Ricos e os brancos pobres”.28 As diligências nas lavras diamantinas avançaram na medida da boa ou má vontade dos senhores em permitir buscas em suas propriedades e estenderam-se desde os serviços de mineração do Jequitinhonha até o Serro. Em Conceição, 50 escravos deixaram a fazenda do major Antônio da Silva Pereira e provocaram o aquartelamento de mais 50 praças da Guarda Nacional no termo. Nas imediações de Diamantina, constava que um grupo de 80 negros supostamente saídos da Lavra do Barro se preparava para invadir a cidade do Serro, onde os quilombolas continuavam a deixar os cidadãos em sobressalto. O medo da rebelião era ainda tão forte em novembro de 1864 que o presidente da província fez ver ao delegado de Diamantina a necessidade de manter um destacamento permanente no “vulcão do Barro”. Além da reunião de forças, pensava ele que era preciso ultimar logo o processo aberto para julgar os acusados pela insurreição, já que “a ação das leis sobre os culpados produz sempre os seus salutares exemplos”.29 A insurreição do Serro resultou em um desfecho drástico para seus protagonistas. Planejada pouco antes da Guerra do Paraguai, ela foi sufocada com a prevenção e força cabíveis a um país em estado de guerra. O carpinteiro José Cabrinha, considerado o cabeça da revolta, foi sentenciado com a pena de galés por 20 anos. Nuno, Demétrio, Adão, Leonel e Sebastião foram punidos com penas de açoites que variaram de 200 a 900 chibatadas, combinadas com o uso de ferro no pescoço por períodos de três meses a um ano. Alexandre, irmão de José Cabrinha, e o tropeiro Faustino, único escravo africano indiciado por participação na conspiração de 1864, foram absolvidos. Curiosamente, nenhum cativo de Diamantina foi pronunciado ou condenado por envolvimento no levante. Os alfaiates David e Francisco, vendidos havia pouco tempo do Serro para aquela cidade, sofreram interrogatório, mas apenas David foi punido com o recrutamento. Ainda que desbaratado o plano de José Cabrinha e seus parceiros, o perigo não estava afastado nos municípios do Serro e Diamantina, onde sempre proliferavam novos planos de rebelião nascidos da leitura geopolítica que escravos faziam dos jornais O que se “ouvia” pelos jornais Muitos entre os líderes da rebelião de 1840 possuíam algum grau de alfabetização. Demétrio e David, por exemplo, disseram ser letrados, enquanto Sebastião, escravo doméstico na fazenda Sesmaria, afirmou “poder ler muito mal a letra redonda”.30 Com o progresso das investigações, houve até quem dissesse que os escravos do Serro trocavam cartas com os escravos da Companhia do Gongo Soco, em Mariana. A presença de cativos letrados na liderança do levante de 1864 provocou intenso debate entre proprietários mineiros, que desconheciam o quanto seus escravos sabiam sobre propostas de abolição existentes no Brasil e no exterior. Quando a insurreição veio à tona, o deputado serrano José Joaquim Ferreira Rabello foi o primeiro a reclamar de “alguns escravos que lendo as ocorrências da guerra civil nos Estados Unidos as transmitem aos que não sabem ler”.31 Ele se referia à prática bastante comum entre escravos alfabetizados de lerem jornais em voz alta para outros cativos escutar. Assim eles educavam seus parceiros iletrados, criando um ambiente em que escravos possuidores de uma tradição oral podiam participar da cultura escrita dominada pelos brancos. Escutando os outros, escravos analfabetos se inteiravam sobre eventos nacionais e internacionais, infundindo-lhes novos significados ao redor dos quais estratégias práticas de resistência à escravidão podiam se consolidar. O acesso aos jornais projetava nos escravos brasileiros, para além do espaço demarcado por seus senhores, o desenvolvimento de um discurso de oposição ao cativeiro que contava a seu favor com a decadência do sistema escravocrata por todos os países do Atlântico. Na comarca do Serro, os cativos liam O Jequitinhonha, único jornal a circular em Diamantina durante a década de 1860 O periódico havia sido fundado em 1860 pelo jurista, jornalista e deputado Joaquim Felício dos Santos com a bandeira de órgão do partido liberal na cidade. Apesar dos motes políticos, O Jequitinhonha não era apenas uma folha partidária. Em suas páginas, havia sessões de noticiário nacional e internacional, cartas de leitores, peças de literatura, comunicados, anúncios e colunas sobre a história dos sertões diamantinos. Os primeiros exemplares da folha foram o espaço de gestação da principal obra literária de Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino.32 O Jequitinhonha cobriu de perto a Guerra Civil Americana desde o seu início, em 1861, e publicou com frequência comentários sobre as implicações que a guerra poderia ter no Brasil. Assim como no Serro, notícias sobre a secessão nos Estados Unidos influenciaram rebeliões escravas nas províncias do Maranhão e Pará. Suas histórias funcionaram como janelas para o desenho dos mapas cognitivos e políticos que os escravos criaram para negociar o seu futuro no Segundo Reinado.33 Além da guerra no exterior, corriam nas duas casas do parlamento brasileiro calorosas discussões em torno da premência de se regulamentar o regime escravista. A intenção geral era purgá-lo do que ele teria de mais odioso e repugnante sem, no entanto, extingui-lo. Incluídas na pauta do Partido Liberal, as reformas nada tinham de revolucionárias, mas repercutiam o reconhecimento geral de que a escravidão estava com os anos contados. Sem jamais cogitar na abolição imediata, Silveira da Mota, Tavares Bastos e Nabuco de Araújo estiveram na liderança de projetos gradualistas voltados para “melhorar a sorte dos escravos” e tutelar qualquer processo de transição para o trabalho livre. Além de sugerir a preparação da abolição gradual, políticos liberais tentavam contornar o argumento conservador de que uma tal manobra resultaria no colapso da economia do país. Se pudessem, alguns parlamentares, como o deputado fluminense Joaquim Manoel de Macedo, sequer tocariam em tão delicado assunto por entenderem que tais debates inspiravam um “medo pânico” nas povoações agrícolas e davam força aos rumores de que existia no país “um partido de abolicionistas”.34 Senhores de escravos e autoridades acompanharam atemorizados a circulação de “ideias de liberdade” pelas províncias do Império sem poder fazer muito diante da dispersão de suas fontes. No mínimo, esforçavam-se em não serem eles mesmos os responsáveis por disseminá-las. De uma forma geral, a guerra civil nos Estados Unidos ganhou visibilidade para a elite brasileira como cenário caótico a servir de exemplo para o país. Com a abolição em terras norte-americanas, ela passou a temer a nova posição do Brasil que, ao lado de Cuba, experimentava o isolamento internacional por ser um dos últimos países escravistas das Américas. Para os senhores escravocratas, ficou claro mais uma vez que, no lugar de um processo controlado por meio de uma legislação progressiva, a reforma em relação ao “elemento servil” podia teimar em acontecer de forma rápida e revolucionária. Com o espectro da guerra civil ao fundo, cresceram as preocupações com as consequências da discussão pública da abolição, seja por agitar a imaginação e a ação dos escravos, seja por atrair a ação filantrópica de abolicionistas estrangeiros. Letras e cidadania A disseminação de rumores foi uma arma política poderosa no Brasil oitocentista e, embora fizesse parte do repertório de diferentes grupos sociais, tinha especial significado para as comunidades cativas. Trocados através de canais da vida cotidiana – como em conversas fortuitas nas tabernas ou no ambiente de trabalho – e abertos à contínua improvisação e aprimoramento por seus interlocutores, os rumores articulavam aspirações e ansiedades que dificilmente poderiam ser expressadas de outra forma. Ao mobilizarem indivíduos proibidos de atuar na arena política formal, esses rumores permitiam a projeção de um novo terreno de luta, no qual as demandas dos cativos transitavam livremente e onde era possível imaginar aliados poderosos. Para um grupo que dependia quase sempre do contato pessoal direto para obter informação, o rumor era uma forma narrativa fundamental que dava vida a comunidades políticas alicerçadas na partilha de identidades e experiências culturais sob o cativeiro.35 No entanto, ainda que a oralidade predominasse entre os escravos, a palavra escrita os aprisionava desde o momento em que eram definidos como propriedade de outrem. Por meio de instrumentos financeiros, recibos de vendas, inventários, passes ou cartas de emancipação, a língua escrita comunicava o poder dos senhores e o confinamento dos escravos à margem da sociedade.36 Mesmo assim, alguns escravos perseveraram em meio às dificuldades e aprenderam a ler. Outros aprenderam a escrever ou contar. Demonstrando algum nível de alfabetização, alguns se passaram por livres. Outros ainda se puseram a ler os jornais e a trocar cartas com o objetivo de organizar rebeliões, como a de 1864. Contudo, deve-se questionar o fato de que uma população predominantemente analfabeta pudesse fazer uso da imprensa escrita para coletar informações julgadas cruciais para a conquista de sua liberdade. Dados do Censo brasileiro de 1872 registram que apenas 15,75% da população total do país (incluindo escravos) sabiam ler e escrever no final do Segundo Reinado.37 Em outras palavras, a maioria dos brasileiros vivia numa realidade em que a oralidade não apenas coexistia com a língua escrita, mas predominava na vida cotidiana. A leitura, porém, era não raro uma atividade coletiva que incitava a formação de novos significados pelos ouvintes. Ao lerem em voz alta nas fazendas do Serro, escravos alfabetizados contribuíam para integrar seus pares num mundo em que notícias não precisavam ser memorizadas de forma literal. Setores orais de sociedades letradas simplesmente não dispunham de comunicação perfeita a longa distância. A dificuldade de entender como os escravos podiam conectar eventos registrados por escrito à causa concreta da emancipação decorre da percepção errônea de que, uma vez publicadas, notícias carregavam um significado inequívoco. Escravos viam geografia, tempo e relações humanas através do filtro formado por suas histórias de migração, destituição e ruptura permanente de relações familiares. Nesse contexto, a alfabetização possuía um significado mais amplo do que a habilidade de ler e escrever. O domínio das letras abria espaço para uma lógica alternativa, uma forma específica de ler relações de poder na vida cotidiana. Por essa razão, senhores desencorajavam a educação de seus trabalhadores e, quando a promoviam, tendiam a limitá-la às necessidades dos ofícios a serem desempenhados pelos cativos. É preciso também levar em consideração que, na segunda metade do século XIX, a presença cada vez mais acentuada da língua escrita estava transformando regimes de veracidade e autenticação entre os brasileiros. Aquilo que valia legalmente devia ser passado por escrito. Para grande parte dos escravos, a palavra escrita carregava o peso de um documento oficial. Muitos claramente vinculavam os meios impressos à noção de legalidade e ao âmbito da ação governamental. A população escrava estava submetida a uma cultura extremamente jurídica em que se procurava registrar todo tipo de transação cotidiana. Curiosamente, o Brasil oitocentista era um país a um só tempo legalista e semiletrado que concedia liberdade por documento escrito a cativos que raramente o podiam ler. A insurreição de 1864 sugere que estudos sobre o protesto escravo no Brasil precisam levar seriamente em consideração o conhecimento que os negros brasileiros tinham das fronteiras abstratas que demarcavam escravidão e liberdade nas Américas. Desenrolando-se nos bastidores do segundo boom da extração de diamantes em Minas Gerais, a rebelião germinou de uma combinação singular entre a interpretação dos rebeldes sobre o momento histórico em que viviam e as culturas negras construídas por crioulos e africanos nas zonas de mineração do Alto Jequitinhonha. O levante trouxe à tona um projeto de vida alternativo almejado por escravos num momento crucial das discussões sobre o futuro do cativeiro no Brasil. Seu ativismo político revelou que parte da população de cor de Minas Gerais compreendia a escravidão em termos atlânticos, segundo os quais a guerra nos Estados Unidos figurava como movimento pela libertação dos escravos de todo o continente. Suas ideias de liberdade invocavam noções de cidadania que não obedeciam a fronteiras nacionais e demonstram que sociedades escravistas nas Américas estavam ligadas por mais do que relações comerciais e diplomáticas. Aos olhos dos escravos de Serro e Diamantina, os jornais garantiam que o Atlântico chegasse até o Jequitinhonha.

RESUMO | Este artigo conta a história da rebelião escrava do Serro ocorrida na província de Minas Gerais em outubro de 1864. Cientes, por meio de jornais, dos projetos emancipacionistas em debate no parlamento nacional e da guerra civil nos Estados Unidos, escravos das lavras de dia[1]mantes, fazendas, quilombos e das cidades do Serro e Diamantina plane[1]jaram uma “guerra contra os brancos” para obter sua liberdade. Por meio da análise dessa revolta, pretende-se trazer à tona o papel da imprensa e da alfabetização escrava no processo de resistência negra ao cativeiro, assim como suas relações com o cenário político da década de 1860. ABSTRACT | This article tells the story of the Serro slave rebellion that occurred in the Province of Minas Gerais in October 1864. Aware, through newspapers, of the emancipation debate taking place in the national legislature, and of the American civil war, slaves working in diamond mines, on farms, those living in enclaves, as well as in the cities of Serro and Diamantina planned a “war against the Whites” in order to gain their freedom. By analyzing this revolt we seek to bring to the fore the role of the press and of slave literacy within the process of slave resistance to capti[1]vity, as well as to their relations with the political scene during the 1860’s.

Notas | 1. Acareação entre Eva Joaquina de Campos e Adão, escravo de D. Ermelinda Cândida Perpétua (21/10/1864). Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (doravante ANRJ), Corte de Apelação, processo crime de insur[1]reição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 12. 2. Interrogatório de Antônio (13/10/1864). ANRJ, Corte de Apelação, pro[1]cesso crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 37. 3. 3° Interrogatório de Adão pardo (21/11/1864). ANRJ, Corte de Apelação, processo crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 75. 4. Ofício enviado pelo fiscal interino dos diamantes João Pires Cardoso ao presidente da província de Minas Gerais, Quintiliano José da Silva (04/08/1845). Arquivo Público Mineiro (doravante APM), Presidência da Província, Mineração e Terrenos Diamantinos, 1843-1846, PP1/19, cx. 06. 5. As lavras de Diamantina foram desimpedidas como resposta à grande seca de 1832 e 1833, muito embora a Real Extração tenha permanecido ativa até 1841. 6. SLENES, Robert W. Múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Cadernos IFCH, Unicamp, Campinas, n. 17, 1985. p. 47 e 67. 7. Sobre a importância do tráfico negreiro para Minas, ver: LIBBY, Douglas Cole. Minas na mira dos brasilianistas: reflexões sobre os trabalhos de Higgins e Bergad. In: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues et al. (Org.). História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG, 2001. p. 279-304; FRAGOSO, João Luís. Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada. Os códices 390, 421, 424 e 425: despachos de escravos e pas[1]saportes da Intendência de Polícia da Corte, 1819-1833. In: BOTELHO et al. (Org.). História quantitativa e serial no Brasil, p. 239-278. 8. Mapa das Freguesias, Distritos, Fogos, Populações parciais e geral do Município do Serro (janeiro de 1856), elaborado pelo delegado de polícia Bento Carneiro. APM, Seção Provincial, Presidência da Província, cx. 50, doc. 24. 9. Extrato das informações prestadas pelas Câmaras Municipais da Província em cumprimento das circulares de 28 de novembro de 1853 e 11 de novembro de 1854. Relatório do Presidente da Província de Minas Gerais, Francisco Diogo Pereira de Vasconcellos. Biblioteca Nacional (doravante BN), 25/03/1855, anexo sem paginação. 10. Censo provincial do distrito da cidade de Diamantina (1832), citado em: SOUZA, José Moreira de. Cidade: momentos e processos. Serro e Diamantina na formação do norte mineiro no século XIX. São Paulo: ANPOCS/Marco Zero, 1993, p. 116, 123. No APM, há um censo para a mesma localidade que contabiliza 12.445 habitantes, dos quais 8.929 (72%) seriam escravos. Tais números devem ser relativizados, pois provavelmente correspondem apenas a estimativas. Ver: Lista Nominal dos Habitantes (por fogos) da Vila Diamantina do Serro (20/07/1832) elaborada pelo juiz de paz da paróquia, Manoel Vieira Couto. APM, Seção Provincial, Presidência da Província, cx. 11, doc. 7. 11. Estimativa do vigário da paróquia a pedido da Câmara Municipal de Diamantina. É possível que a população tenha crescido ainda mais, em função da corrida ocasionada pela abertura das lavras à exploração particular. SOUZA. Cidade, p. 116. 12. O Jequitinhonha, 02/08/1862, 21/02/1863, p. 3. O periódico não explicita o terceiro quesito. 13. Estatística Criminal. BN, Relatório do Ministério da Justiça de 1865 referente ao ano de 1864, p. 1.

14. CARVALHO NETO, P. de. Rebelião de escravos (Apresentação de um documento inédito). Resenha Literária, Recife, 1864. 15. LUNA, Luís. O negro na luta contra a escravidão. Rio de Janeiro: Leitura, 1968. p. 149-151; GOULART, José Alípio. Da fuga ao suicídio: aspectos de rebeldia dos escravos no Brasil. Rio de Janeiro: Conquista, 1972. p. 178-180; BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histó[1]rico-geográfico das Minas Gerais. Belo Horizonte: Saterb, 1971. p. 75. 16. Refiro-me aqui às tentativas de rebelião ocorridas em Carrancas (1831 e 1833), Santa Rita do Turvo (1831), Itabira do Campo (1831) e Mariana e Ouro Preto (1835). A respeito, ver: ANDRADE, Marcos Ferreira de. Rebeldia e resistência: as revoltas escravas na província de Minas Gerais (1831-1840). Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, 1996; LISLY, Andréa. Crime e revolta: relações entre senhores e escravos em Minas Gerais nas pri[1]meiras décadas do século XIX. Registro, Mariana, ano I, n. 1, mar./ago. 1994. p. 5. 17. Os escravos de Carrancas esperavam tomar conta das propriedades em que trabalhavam, certos de que os restauradores que acabavam de realizar uma sedição militar em Ouro Preto os ajudariam. ANDRADE. Rebeldia e resistência; ANDRADE, Marcos Ferreira de. Rebelião escrava na comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais: o caso Carrancas. Afro[1]Ásia, Salvador, n. 21-22, p. 45-82, 1998/1999. 18. LISLY. Crime e revolta. 19. 1° Interrogatório de Nuno, escravo de Veríssimo Pereira dos Reis (24/10/1864). Corte de Apelação, processo crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 22. 20. Interrogatório feito ao escravo José Cabrinha (24/10/1864). Corte de Apelação, processo crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 24. 21. Depoimento da testemunha Joaquim Bernardino Pereira de Queiroz (21/11/1864). Corte de Apelação, processo crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 66. 22. 2° Interrogatório do escravo Nuno (22/11/1864). Corte de Apelação, processo crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 87. 23. Depoimento da testemunha Miguel Pereira Luís (21/11/1864). Corte de Apelação, processo crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 64. 24. Interrogatório de Leonel (23/11/1864). Corte de Apelação, processo crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 98. 25. Depoimento de Eva Joaquina de Campos (21/10/1864). Corte de Apelação, processo crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 14. 26. Ofício enviado pelo delegado de Diamantina, João Nepomuceno Aguilar, ao chefe de Polícia da província de Minas Gerais (19/08/1865). ANRJ. Ofícios de Presidentes de Província (MG), IJ1, maço 630 (1865 - segundo semestre).

27. Cópia de ofício enviado pelo juiz de direito da comarca do Serro, João Salomé Queiroga, ao presidente da província de Minas, Pedro de Alcântara Cerqueira Leite (29/10/1864). ANRJ. Ofícios de Presidentes de Província (MG), IJ1, maço 628 (1864). 28. Interrogatório feito pelo delegado de polícia João Raymundo Mourão à Vitória da Costa, por alcunha o Vitório (19/11/1864). Biblioteca Antônio Torres: processos criminais (Diamantina), maço 81.

29. Ofício enviado pelo presidente da província de Minas, Pedro de Alcântara Cerqueira Leite, ao juiz de direito da comarca do Serro, João Salomé Queiroga (10/11/1864). ANRJ. Ofícios de Presidentes de Província (MG), IJ1, maço 628 (1864). 30. Interrogatório ao réu Sebastião (23/11/1864). Corte de Apelação, pro[1]cesso crime de insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), p. 98. 31. Carta enviada por José Joaquim Ferreira Rabello ao presidente da província de Minas, Pedro de Alcântara Cerqueira Leite (11/10/1864). ANRJ. Ofícios de Presidentes de Província (MG), IJ1, maço 628 (1864). 32. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1978. 33. O historiador Phillip Troutman chama de “alfabetização geopolítica” as habilidades e experiências que levaram escravos, libertos e quilombolas a poder se imaginar como parte de uma comunidade atlântica formada a partir não somente por ligações literais entre eles, mas também pelo que há de comum na condição escrava, por formas similares de ler o mundo e por práticas culturais. TROUTMAN, Phillip. Grapevine in the Slave Market: African American Geopolitical Literacy and the 1841 Creole Revolt. In: JOHNSON, Walter (Ed.). The Chattel Principle: Internal Slave Trades in the Americas. New Haven, CT: Yale University Press, 2004. p. 203-233. 34. BN, Anais da Câmara dos Deputados, 1864, tomo II, sessão em 31/03/1864, p. 289. 35. Em comentário sobre a Revolução Haitiana, Julius Scott refere-se, por exemplo, à partilha entre eles de uma “cultura da expectativa”, alimentada permanentemente pela troca de informações sobre os desenvolvimentos históricos do mundo Atlântico. Ver: SCOTT, Julius. The Common Wind: Currents of Afro-American Communication in the Era of the Haitian Revolution. Duke University: PHD thesis, 1986. p. 118. 36. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Writing from the Margins: Brazilian Slaves and Written Culture. Comparative Studies in Society and History, n. 49, v. 3, p. 611-636, 2007. 37 CHALHOUB, Sidney. The Politics of Silence: Race and Citizenship in

Isadora Moura Mota é mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutoranda em História na Brown University, em Providence, Estados Unidos. Sua tese de doutorado, em andamento, trata do papel da alfabetização escrava nas lutas pela emancipação no Brasil na segunda metade do século XIX. As questões tratadas neste artigo são aprofundadas em O ‘vulcão’ negro da Chapada: rebelião escrava nos sertões diamantinos (Minas Gerais, 1864), dissertação de mestrado defendida na Unicamp em 2005. E-mail: isadora_mota@brown.edu

site: www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm.pdf/2014A07.pdf



terça-feira, 24 de setembro de 2024

A INDÚSTRIA DE LAPIDAÇÃO - FORMAÇÃO

 

A INDÚSTRIA DE LAPIDAÇÃO

FORMAÇÃO

NOTICIA HISTÓRICA

Há no município de Diamantina, de acordo com os dados colhidos pelo recenseamento econômico de 1920, dez oficinas de lapidação de diamantes, das quais a maior é a da Formação, de propriedade do Coronel José Neves Sobrinho, a 6 quilômetros de Diamantina, com o número de 36 rodas destinadas á lapidação propriamente dita da preciosa pedra.

VISTA AÉREA ANTIGA DE DIAMANTINA
https://www.researchgate.net/profile/Rafael-Frajndlich/publication/321319074/figure/fig5/AS:565385763856384@1511809878812/Figura-6-Panorama-de-Diamantina-na-primeira-metade-do-Sec-XX-aproximadamente-1940.png

Fundada em 1875 pelo negociante e industrial João da Matta Machado, a fábrica e o povoado da Formação passaram, ultimamente por muitos melhoramentos, tendo se aumentado de maneira considerável número de rodas para a lapidação, e, consequentemente, o número de operários e de habitações, no florescente povoado.

O seu atual proprietário distinto Coronel José Neves Sobrinho não se cansa em introduzir na fábrica de lapidação, como nos campos úberes que a circundam e que se estendem por muitos hectares melhoramentos contínuos, que aquela como estes agradecem com liberalidade, dando ao benfeitor os belos preventos da indústria e a fartura do celeiro, cada dia mais apreciável.

O povoado da Formação, centro comercial e intelectual de outros pequenos lugarejos de derredor, possui uma escola primária, regida pela competente professora D. Maria Luiza Seixas, é iluminada a eletricidade e tem uma linha telefônica que a liga a esta cidade.

O Momento, 7 de setembro, Diamantina/MG, 1922

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O PASSADO EM DIAMANTINA

 COISAS DO PASSADO DE DIAMANTINA

(Do Livro inédito de J. Augusto Neves)

A iluminação em Diamantina – Nos antigos tempos, a nossa cidade era iluminada, primeiro, a azeite fumarento com grandes lampiões de folha, suspensos por correntes, às esquinas das ruas. Veio, depois, a iluminação a querosene, em lampiões, feita por arrematação, e havendo empregados para ascender, às 6 horas da tarde, e repagar, as 12 horas da noite os lampiões, os quais faziam o serviço, carregando escadas as costas.

O interessante é que no período lunar, não havia iluminação; os lampiões eram retirados dos postes, e passavam por uma limpeza, sendo recolocados depois da lua cheia.

Quando havia espetáculo no velho Teatro de Santa Isabel, os lampiões a querosene só eram apagados meio hora depois que aqueles terminavam.

Veio-nos, em seguida, a iluminação a gás acetileno, que pouca ou nenhuma vantagem oferecia.

Vista panorâmica da cidade de Diamantina
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Afinal, veio a luz elétrica, a princípio muito boa e, depois, péssima com o aumento do consumo.

Diamantina, hoje, tem ótima luz.

Uma nota interessante. – Em certa ocasião que a cidade ficou às escuras, o saudoso Juca Boi arranjou pedaços de archotes e os colocou nos lampiões.

A propósito da tradicional festa do Divino, nos antigos tempos de Diamantina, contavam os antigos: Certa vez, foi sorteado imperador um velho de vida irregular, que vivia em união ilícita.

Isto explica-se, porque, nos antigos tempos, não havia seleção na escolha de pessoas, para servir como festeiros.

O homem ficou tão comovido e contente com a escolha do Divino, que foi logo á igreja do Amparo; e, diante do trono, abre os braços e assim se exprime: “Ah! Seu Divino, até que, enfim, você me desabusou; vou-me casar com a bruaca velha e...”

É escusado dizer que o casamento, se efetuou logo.

Quem diria? – O pitoresco Bairro do Rio Grande, onde hoje se cuida da vida espiritual dos homens e se prodigaliza a caridade aos velhinhos desamparados, justamente ao alto da rua do Areão, era o ponto em que, nos antigos tempos de Diamantina, se executavam os infelizes condenados à morte.

Ainda há poucos anos, encontravam-se, ali, dois tocos dos postes do triângulo da forca.

Contavam os nossos antepassados as cerimônias impressionantes que precediam à cena horrível do enforcamento aterrador.

Precedia-se, pela manhã, na velha Sé, a missa em que o sentenciado recebia a sagrada comunhão.

Após a missa, formava-se o préstito de uma vivo-morto, composto da Guarda Municipal e do Destacamento Policial, de autoridades judiciárias e policiais, conduzindo em direção ao local da forca, o condenado, vestido de túnica branca dos sentenciados, já como laço da corda ao pescoço, e acompanhado pelo caixão mortuário, carregado á cabeça de outro sentenciado.

Seguia-o Vigário da Paróquia, revestindo de sobrepeliz e estola preta; o carrasco, que vinha especialmente de Ouro Preto; e a banda de música local, que executava, durante o percurso, alguns trechos e uma marcha fúnebre, comovente e impressionante.

No local, a execução do condenado constituía a tragédia mais compungem-te que se pode imaginar!

vista da cidade e da serra aos fundos onde ocorria os enforcamentos
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É que o desgraçado, já enforcado pelo laço, suportava ainda enganchado no pescoço, o maldito carrasco, agindo com as mãos e fazendo força sobre os ombros do asfixiado, até que este pusesse meio palmo de língua para fora.

Consumada a cena, o carrasco cortava a corda, caindo ao solo o desgraçado, cujo cadáver era conduzido pelos presos da cadeia no Cemitério do Burgalhau, hoje desparecido.

Escusado é dizer que a banda de música, ao regressar das nefandas e burlescas tragédias, punha-se a tocar dobrados alegres!...

O último enforcamento em Diamantina, foi em 1849, há mais de 175 anos.

Um episódio se deu, por ocasião desse último enforcamento. É que, no ato de ser enforcado o desgraçado, a corda arrebentou, e houve quem se prontificasse a vir buscar na cidade, nova corda, para o suplício do infeliz.

 Xisto Rei.

Voz de Diamantina, pág.3, nº 24, 4 de maio, Diamantina/MG, 1947.

 

 

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

INAUGURAÇÃO DA PONTE DE MENDANHA

 

A INAUGURAÇÃO DA PONTE DO MENDANHA

Conforme fora anunciado, realizou-se, solene e oficialmente, a inauguração da grande e histórica ponte sobre o famoso Rio Jequitinhonha, que liga as duas partes habitadas da Vila de Mendanha e o Município de Diamantina ao norte e nordeste do nosso Estado, reconstruída sob a proficiente direção do então engenheiro da 8ª Residência de Estradas de Rodagem do Estado, dr. Euler Rocha, a quem devemos principalmente, o magnífico trabalho, secundado pelos seus inteligentes auxiliares chefe de serviço, José Apolinário Braga, e o operário operoso, sr. José Pedro de Alcântara.

PONTE DE MENDANHA
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Desde de cedo, de domingo último 25 do mês p: passado, que Diamantina se via em movimento com seus carros e caminhões, conduzindo a Mendanha os convidados, autoridades e numerosos diamantinenses que iam assistir a festa da inauguração.

Para lá também seguiram o nosso diretor, em companhia do distinto engenheiro Celso Werneck e do Revmo. Padre Gaspar Cordeiro Couto, estimado, virtuoso e abnegado missionário Lazarista, incansável e sempre pronto, sem medir sacrifícios, para servir nos misteres da Igreja e socorrer as almas nos momentos calamitosos desta vida terrena de agruras e sofrimentos.

Ao pitoresco e alegre antigo Arraial de Mendanha, fundação do português Padre Antônio Mendanha, histórico que se tornou pela Revolução de 1842, tal o civismo de seus filhos, berço de homens de valor e conceito, como Ezequiel Carneiro Neto Leão; construtor de sua primeira ponte; farmacêutico Bernardino Felix Rosa, Luiz Gomes de Oliveira, Luiz Augusto de Araujo, Cel. Manoel Cesar Pereira da Silva, Joaquim Cruz, José Severiano de Araujo Tameirão, Cel. José Carlos de Araujo, Luiz Eloi Durães, Padre Marcos Antônio de Araujo, Pedro e Francisco Nunes e muitos outros, partiram carros e caminhões, conduzindo cavalheiros, senhoras, moças e senhorinhas, para assistir a festa da benção e inauguração oficial da ponte.

A hora determinada pelo programa publicado por esta folha. O Revmo. Sr. Padre Gustavo Cordeiro Couto, C.M., começou a missa na simpática e poética capela – Matriz da Colina, de que e orago Nossa Senhora da Mercês, Rainha do Céu; idolatrada pelo amor e devoção do povo de Mendanha.

Ao lado do Prefeito Municipal sr. José Machado Freire, assistiram de joelhos ao santo sacrifício da Missa, o nosso Diretor, muitos visitantes e os habitantes do lugar.

Um coro de harmonioso de cantoras piedosas do arraial, cantou o ofício de Nossa Senhora á estação da Santa Missa, acolitada pelo inteligente menino Antônio Guido Flecha.

Pouco depois das 18 horas, já havendo chegado ao arraial o querido e apostólico Arcebispo S. Excia. Revma., o sr. D. Serafim Gomes Jardim, acompanhado do novel e jovem sacerdote diamantinense, Remo. Padre José Augusto Ferreira Junior, seguiu-se a benção solene da nova ponte, pelo sr. Prefeito Municipal, ouvindo-se os seguintes oradores:

Dr. José Geraldo Jardim, representante da 8ª Residência, entregando a ponte ao prefeito; o dr. Júlio Mourão representante do povo de Mendanha; o Prefeito José Machado Freire, entregando oficialmente a ponte ao trânsito público; a senhorinha Neusa Tameirão e o Capm. Augusto Júlio de Moura.

A essa hora, parece que o povo, que aglomerava na ponte, não sentia a sensação produzida pelo ardor do sol e mormaço asfixiante.

Na sala da escola pública regida exma. Professora Geralda de Barros, houve um lunch, regado a cerveja, vinhos e guaraná, repetidos por vezes, oferecido aos visitantes.

Pela volta das 17 horas, na mesma sala, foi oferecido as autoridades presentes e aos visitantes lauto ajantarado, falando ao servir-se a sobremesa, o Revmo. Sr. Padre Gaspar Cordeiro Couto e o festejado poeta patrício Hermes Pires Leão.

A festa da inauguração da ponte foi honrada com a presença do exmo. Sr. Dr. Lahyre Santos, meritíssimo Juiz de Direito da Comarca, e exma. esposa Nazinha Santos, assim como de distintas senhoras, cavalheiros, senhorinhas e rapazes do meio social de Diamantina.

Em 1858, por contrato com o governo da Província, Ezequiel Neto Carneiro, isto há mais de 99 anos, construiu a ponte, exclusivamente, para o trânsito de tropas e pedestre, pagando-se 20 réis por pedestre e por animal 1,40 réis, da antiga moeda.

Essa ponte era fechada no centro, onde se via uma coberta, onde as moças do arraial faziam serenatas as noites de luar.

Em 1863, quando nem se sonhava em carros e caminhões, foi inaugurada.

A sua extensão total é de 107 metros.

PONTE DE MENDANHA ATUAL
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Como já dissemos, foi ótimo o serviço de construção.

Voz de Diamantina, pág.2, nº11, 1 de fevereiro, Diamantina/MG, 1948

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

OS INGLESES EM DIAMANTINA

 OS INGLESES EM DIAMANTINA

AO Dr. João brandão costa

(Paulo Kruger Corrêa Mourão)

A exploração dos diamantes que ainda hoje se faz em escala considerável, atrai, como é natural, o capital estrangeiro, principalmente o britânico.

A preciosa gema não está mais a flor da terra, como soia ser no tempo dos contratadores e das intendências. Assim, é necessário o emprego de maquinismo moderno, como dragas, peneiras e bombas, que arrancam o cascalho diamantífero do leito dos rios desviados, bem como de acúmulo dos desmontes, lugares inacessíveis ao humilde garimpeiro. Este, desde os tempos coloniais, procurava tirar o sustento próprio e da família, faiscando aqui e ali não obstante a grande perseguição da Intendência.

O trabalho mais técnico permite tirar as reservas de diamantes do seio mais profundo da terra, porém, para tanto, torna-se necessário o capital que, não havendo de sobejo entre nós, é importado do estrangeiro, sobretudo, da Grã-Bretanha, onde existe em excesso.

De lá também veem homens resolutos que deixam os seus lares para explorar riquezas em países estrangeiros longínquos.

PRAÇA JK
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Por esse motivo há muitos ingleses residindo em Diamantina. Vários deles tantos anos lá estiveram que acabam assimilando os usos da cidade, vivendo como se fossem da terra.

Por surpreendente que parece, alguns mudaram diretamente de Londres para aquela cidade do nordeste de Minas, onde constituíram o seu “home” sem pretender jamais sair dali.

O povo da cidade os observava com muita curiosidade, admirando a suas simplicidade e adaptação no meio, não obstante o português estropiado que falam toda a vida, com acento estrangeiro.

Contudo, há certos hábitos que conservam, como a alimentação, constante de bifes, batatas, leite, ovos e muita conserva de lataria.

Apreciam muito a cerveja até mesmo a célebre Tijucana, fabricada na cidade pelo seu chico Costa, porém a bebida da sua preferência sempre foi o velho uísque inglês ou americano.

Pelo ano de 1920, lá residiam:

Mr. Bichardson um inglês fechado, carrancudo, alto, magro, de óculos espessos, que quase não falava o português.

Mr. Galloway – simpático, fino, cavalheiro, inteligente, de muito acento e cheio de palavras inglesas.

Dr. Jonhson – um tipo alto, forte, de alegria comunicativa, com uma mão imensa que apertava dos outros com força ao lhes perguntar: “How are you?”

Burk Jonhson- magro, não muito alto, de rosto manchado e nariz vermelho, alcoólatra inveterado, falando sempre com a voz arrastada um português incompreensível que fazia rir.

Mr. Smith – alto, magrinho, delicado, com uma voz doce e um razoável português.

Mr. Lourenço – caladão, magro, beberão.

A esta lista é preciso acrescentar os nomes de outros que, embora não fossem ingleses, viviam sempre com estes e, como tais, eram denominados pelo povo da cidade que os não distinguia:

Mmme. Richardson – francesa, grandalhona, vermelhusca, com uma pronuncia de rr puxados com que irritava o marido – Mr. Richardson – e os que não o eram.

Snr. Jacques Santiago Paris-uruguaio, exuberante, bonitão, cheio de dichotes, anedotas e histórias interessantes com que alegrava a roda de ingleses, pois falava muito bem a língua de John Bull. Os diamantinenses apreciavam muito o seu bom humor e alegria comunicativa.

Mr. Spangler – americano roliço que falava sem encarar as pessoas e era muito entendido de negócios.

Mr. Humphery – também americano, boníssimo, falador que dava boas gargalhadas, com razoável português e muitos perdigotos.

O fato seguinte caracteriza esta boa gente.

Organizaram um piquenique na Pedra Grande, local aprazível da cidade. Combinaram que a contribuição de cada um seria surpresa.

Pela manhã, encontraram-se no local referido, cada qual com o seu farnel.

O primeiro a abrir o seu foi o casal Richardson. Haviam levado 2 litros de wiskey e 1 litro de gin; em seguida, Mr. Smith mostrou o seu, constituído de 1 garrafinha de aperitivo e 1 litro de Wiskey; logo após Hamphrey mostrou 1 litro de rum; Seu Paris desembrulhou 2 litros de Wiskey e 1 de rum; Dr. Jonhson levou 1 litro de Wiskey, 1 de rum e outro de gin. Finalmente Mr. Lourenço desembrulhou um grande pão. Depuseram tuto isto sobre a relva e, então Mr. Richardson, examinando cuidadosamente cada farnel, fixou a sua vista sobre pão e perguntou, designando-o:

- Pra que tanto pão?

Esses ingleses, entretanto, nem sempre viviam em harmonia. Formavam grupos antagônicos. Os interesses de um grupo começaram a entrar em conflito com os do outro. De um lado Mr. Gallaway, Mr. Smith, Mr. Humphrey, do outro Mr. Richardson, Seu Paris e outros.

Mr. Spangler – concunhado de Mr. Galloway, acabou rompendo com este e chegou a entrar em pugilato com o esguio e delicado Mr. Smith.

São as vicissitudes dos grandes interesses próximos. Esses não eram nem de leve os únicos males ocasionados pela exploração dos diamantes.

Ao lado de inúmeros episódios alegres e burlescos, entre esses estrangeiros, havia ás vezes, também acontecimentos tristes como o de Burt Jonhson.

Tanto bebeu este súdito de Sua Majestade, que começou a delirar. O próprio irmão perdeu completamente a confiança nele e o tratava como um ébrio habitual que era.

Um dia, sentou-se á mesa de um bar, e começou a tomar cerveja uma garrafa após outra. Em dado momento, gritou:

- Chamem a Maria, minha mulher!

Debruçou-se sobre a mesa e morreu.

Não era casado e nem tinha nenhuma mulher com o nome de Maria.

Hoje, quase todos eles já morreram, porém vieram outros que continuam explorando as nossas preciosas gemas.

Voz de Diamantina, pág. 4, nº 11, 1 de fevereiro, Diamantina/MG, 1948.

 

   

domingo, 11 de agosto de 2024

LENDA DA GAMELEIRA DO ROSÁRIO

 

A GAMELEIRA DO CRUZEIRO

F. Silva Neira

(Do livro “Ao Pé da Figueira”)

Teatro Santa Isabel, NS do Rosário, o cruzeiro
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As antigas cidades mineiras são repositórios de lendas interessantes que passam de geração a geração.

A lendária cidade de Diamantina existe uma igreja dominada Rosário, construída ali pelo ano de 178º. Possui um torreão quadrangular que se levanta a direita de quem entra no templo, e um frontão de estilo barroco, gracioso e atraente.

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A GAMELEIRA E O CRUZEIRO

Até o ano de 1915 ainda existia um antigo teatro ao lado da igreja, teatro esse que foi demolido para dar lugar a construção de uma cadeia. Ainda bem me lembro de que, no dia em que os presos foram conduzidos da cadeia velha para a nova, um deles fugiu pelo morro abaixo e foi caçado a bala. Nós estudantes internos, vínhamos de um passeio, quando avistamos um homem que vinha correndo morro abaixo, perseguido por soldados que atiravam com fuzis. As balas sibilavam, aqui e acolá.  O homem viu-nos e tentou correr para o nosso lado, sendo, porém atingido na cabeça por uma bala que lhe tirou a vida.


Mas voltemos á nossa igreja do Rosário, de aspecto tristonho, talvez por se achar sempre fechada e ainda por ter sepulturas no próprio adro. Certa vez, visitamos o Rosário, e um estudante brincalhão, tendo lá encontrado algumas caveiras, levou, ás escondidas, uma delas. Á noite, quando os pequenos se dirigiam para o dormitório, soltaram gritos de terror e desandaram a correr escadas abaixo. É que, a porta do dormitório, estava uma caveira em cima de um grosso dicionário latino, entre duas velas acesas.

Em frente da igreja do Rosário havia um cruzeiro com todos os instrumentos do martírio: cravos, martelo, coroa de espinho, lança, etc., tudo recortado em madeira e pintado de branco. Todos os anos o dia 3 de maio, o povo festeja a Santa Cruz com cânticos, fogueira e foguetório.

Conta-se que, em princípio deste século, vivia em Diamantina um jovem e talentoso artista que todos os anos reformava os instrumentos do martírio. Diziam que fazia aquilo em cumprimento de uma promessa feita a Nossa Senhora do Rosário.

Naquele ano, Túlio Fontes, assim se chamava o jovem, pôs-se a trabalhar nos martírios, mas sem o entusiasmo e a alegria ruidosa de outros anos. As pessoas que o ajudavam naquele trabalho começaram a descontar da coisa... Para tirar as dúvidas, um dos homens indagou:

- Sabe de uma coisa. Túlio? Que tristeza é essa? Até parece que você anda apaixonado?

- Apaixonado, eu?

- Não sei... Você é que nos deve saber explicar-nos o caso.

- Não ando apaixonado... mas... acho que terei muito pouco tempo de vida...

- Oh... que tolice! Um rapaz a vender saúde como você!

- É verdade, mas... sonhei que me mataram...

- Tolice das tolices! Você ainda acredita em sonhos? Não pense nisso e procure distrair-se!

- Penso, sim!... E sabe de uma coisa? Ontem fui ao Alto da Cavalhada e trouxe de lá esta semente de gameleira...

- E para que serve isso?

- Para que serve? Reparem bem no que vou lhes dizer. Vou colocar esta emente de gameleira na fenda deste cruzeiro.

- E para que isso?

- Para que?

- Sim, para que serve isso?... gritou um dos homens.

O jovem artista sorriu tristemente e respondeu:

- Escutem-me! O coração me diz que vou morrer, Pois bem, depois que eu tiver morrido, se nesta cruz nascer uma gameleira, será sinal de que Deus teve misericórdia de mim, a minha alma se salvou.

Os que ouvirem tais palavras abanaram a cabeça, sorriam e tomarem aquilo por gracejo.  O rapaz devia estar apaixonado por uma daquelas moças e tinha receio de lhes dizer a verdade.

Um mês depois, o jovem Túlio Fontes foi barbaramente assassinado por uns capangas, alguns dos quais foram presos e logo soltos por falta de provas. Esse crime até hoje jaz envolto em mistério. Parece que certa família então poderosa em Diamantina estava envolvida em tragédia e tudo fez para que o tribunal pusesse em liberdade os cúmplices, como, de fato aconteceu.

Diamantina em peso chorou a morte do jovem artista. Por sua alma foram celebradas muitas missas. No alto de um morro de pedras, no bairro da Palha, existe um cruzeiro ao lado de um buraco aonde dizem, foi atirado o cadáver de Túlio. Em nosso tempo de estudante em Diamantina, quando saímos a passeio sempre encontrávamos moças e meninas com cestinhas de flores, em caminho para o cruzeiro.

Passaram-se meses.

Um dia, da fenda do cruzeiro que se erguia diante do Rosário brotou uma plantinha...

Ninguém se importou com aquilo. De longe parecia uns fiapos de capim, sempre a balouçar, beijados pela brisa.

Os fiapos de capim entretanto, foram-se desenvolvendo; hoje lançam um ramúsculo; amanhã, outro... Na semana seguinte, os ramúsculos tornam-se mais verdes e, com o andar do tempo, definiram-se: - era uma gameleira, uma gameleira que nasceu de dentro do cruzeiro, e o envolveu, completamente, em seus ramos viçosos.

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As pessoas que tinham ouvido as palavras do jovem Túlio, recordaram as predição que passou de boca em boca.

A Gameleira do Cruzeiro entrou a atrair a atenção dos viajantes que visitavam a cidade de Diamantina. Há pouco recebi cara de um amigo, na qual me comunicava que hoje o cruzeiro do Rosário, já não existe, mas em seu lugar eleva-se nos ares uma soberba gameleira.

A Estrela Polar, pág. 3, nº 39, 30 de Setembro, Diamantina/MG,1956.