A GAMELEIRA DO CRUZEIRO
F. Silva Neira
(Do livro “Ao Pé da Figueira”)
Teatro Santa Isabel, NS do Rosário, o cruzeiro teatro+santa+isabel4.jpg (320×220) (bp.blogspot.com) |
As antigas cidades mineiras são repositórios de lendas interessantes que
passam de geração a geração.
A lendária cidade de Diamantina existe uma igreja dominada Rosário,
construída ali pelo ano de 178º. Possui um torreão quadrangular que se levanta
a direita de quem entra no templo, e um frontão de estilo barroco, gracioso e atraente.
2eef70b21e6382d46fcef7fa3f2090c8.jpg (735×488) (pinimg.com) A GAMELEIRA E O CRUZEIRO |
Até o ano de 1915 ainda existia um antigo teatro ao lado da igreja,
teatro esse que foi demolido para dar lugar a construção de uma cadeia. Ainda
bem me lembro de que, no dia em que os presos foram conduzidos da cadeia velha
para a nova, um deles fugiu pelo morro abaixo e foi caçado a bala. Nós estudantes
internos, vínhamos de um passeio, quando avistamos um homem que vinha correndo
morro abaixo, perseguido por soldados que atiravam com fuzis. As balas sibilavam,
aqui e acolá. O homem viu-nos e tentou
correr para o nosso lado, sendo, porém atingido na cabeça por uma bala que lhe
tirou a vida.
Mas voltemos á nossa igreja do Rosário, de aspecto tristonho, talvez por
se achar sempre fechada e ainda por ter sepulturas no próprio adro. Certa vez,
visitamos o Rosário, e um estudante brincalhão, tendo lá encontrado algumas
caveiras, levou, ás escondidas, uma delas. Á noite, quando os pequenos se
dirigiam para o dormitório, soltaram gritos de terror e desandaram a correr
escadas abaixo. É que, a porta do dormitório, estava uma caveira em cima de um
grosso dicionário latino, entre duas velas acesas.
Em frente da igreja do Rosário havia um cruzeiro com todos os
instrumentos do martírio: cravos, martelo, coroa de espinho, lança, etc., tudo
recortado em madeira e pintado de branco. Todos os anos o dia 3 de maio, o povo
festeja a Santa Cruz com cânticos, fogueira e foguetório.
Conta-se que, em princípio deste século, vivia em Diamantina um jovem e
talentoso artista que todos os anos reformava os instrumentos do martírio.
Diziam que fazia aquilo em cumprimento de uma promessa feita a Nossa Senhora do
Rosário.
Naquele ano, Túlio Fontes, assim se chamava o jovem, pôs-se a trabalhar
nos martírios, mas sem o entusiasmo e a alegria ruidosa de outros anos. As
pessoas que o ajudavam naquele trabalho começaram a descontar da coisa... Para
tirar as dúvidas, um dos homens indagou:
- Sabe de uma coisa. Túlio? Que tristeza é essa? Até parece que você
anda apaixonado?
- Apaixonado, eu?
- Não sei... Você é que nos deve saber explicar-nos o caso.
- Não ando apaixonado... mas... acho que terei muito pouco tempo de
vida...
- Oh... que tolice! Um rapaz a vender saúde como você!
- É verdade, mas... sonhei que me mataram...
- Tolice das tolices! Você ainda acredita em sonhos? Não pense nisso e
procure distrair-se!
- Penso, sim!... E sabe de uma coisa? Ontem fui ao Alto da Cavalhada e
trouxe de lá esta semente de gameleira...
- E para que serve isso?
- Para que serve? Reparem bem no que vou lhes dizer. Vou colocar esta
emente de gameleira na fenda deste cruzeiro.
- E para que isso?
- Para que?
- Sim, para que serve isso?... gritou um dos homens.
O jovem artista sorriu tristemente e respondeu:
- Escutem-me! O coração me diz que vou morrer, Pois bem, depois que eu
tiver morrido, se nesta cruz nascer uma gameleira, será sinal de que Deus teve
misericórdia de mim, a minha alma se salvou.
Os que ouvirem tais palavras abanaram a cabeça, sorriam e tomarem aquilo
por gracejo. O rapaz devia estar
apaixonado por uma daquelas moças e tinha receio de lhes dizer a verdade.
Um mês depois, o jovem Túlio Fontes foi barbaramente assassinado por uns
capangas, alguns dos quais foram presos e logo soltos por falta de provas. Esse
crime até hoje jaz envolto em mistério. Parece que certa família então poderosa
em Diamantina estava envolvida em tragédia e tudo fez para que o tribunal
pusesse em liberdade os cúmplices, como, de fato aconteceu.
Diamantina em peso chorou a morte do jovem artista. Por sua alma foram
celebradas muitas missas. No alto de um morro de pedras, no bairro da Palha,
existe um cruzeiro ao lado de um buraco aonde dizem, foi atirado o cadáver de
Túlio. Em nosso tempo de estudante em Diamantina, quando saímos a passeio
sempre encontrávamos moças e meninas com cestinhas de flores, em caminho para o
cruzeiro.
Passaram-se meses.
Um dia, da fenda do cruzeiro que se erguia diante do Rosário brotou uma
plantinha...
Ninguém se importou com aquilo. De longe parecia uns fiapos de capim,
sempre a balouçar, beijados pela brisa.
Os fiapos de capim entretanto, foram-se desenvolvendo; hoje lançam um
ramúsculo; amanhã, outro... Na semana seguinte, os ramúsculos tornam-se mais
verdes e, com o andar do tempo, definiram-se: - era uma gameleira, uma
gameleira que nasceu de dentro do cruzeiro, e o envolveu, completamente, em
seus ramos viçosos.
nossa-senhora-do-rosario-dos-pretos-church-diamantina-unesco-world-DETFG8.jpg (1300×953) (alamy.com) |
As pessoas que tinham ouvido as palavras do jovem Túlio, recordaram as
predição que passou de boca em boca.
A Gameleira do Cruzeiro entrou a atrair a atenção dos viajantes que
visitavam a cidade de Diamantina. Há pouco recebi cara de um amigo, na qual me
comunicava que hoje o cruzeiro do Rosário, já não existe, mas em seu lugar
eleva-se nos ares uma soberba gameleira.
A Estrela Polar, pág. 3, nº 39, 30 de Setembro, Diamantina/MG,1956.
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