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sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A IGREJA DA LUZ, FELISBERTO CALDEIRA E O TERREMOTO EM LISBOA

 

Tempos Idos

Ciro Arno

Diamantina, dezembro de 1893.

Passava de três horas da tarde, quando sai de casa a dar um passeio pelos subúrbios da cidade. No alto da Venda Nova, assentei-me na base do cruzeiro e lancei a vista pelo vasto horizonte, que se me deparava em frente. Ao Sul, na linha escura da Cordilheira Central, dominava sobranceiro o pico do Itambé, próximo ao cabeço arredondado da Pedra Redonda, onde nasce o Jequitinhonha. Pouco distante, pela encosta do morro de Santo Antônio, estendiam-se as casas, em praças, estreitas ruas e tortuosos becos, sobressaindo os campanários, de velho estilo português, de algumas igrejas.

O sino rouco da Luz badalava tristemente na frescura da tarde, que caía. Vem-me então a ideia de visitar aquela capela, tão cheia de tradições dos tempos coloniais de Diamantina.

A Igreja de Nossa Senhora da Luz, baixa enegrecida pelo tempo, estava estrada, quase caindo em ruínas.

Capela Nossa Senhora da Luz - 
Foto-004.png (1276×1153) (pinhotavares.com.br)

Achando aberta a porta, entrei. Só havia um resto de seu antigo esplendor no altar-mor, cujos degraus se ostentavam, numa florescência artificial de belas rosas vermelhas e círios acesos. Lá em cima a imagem da Senhora da Luz com uma capa damasco azul, pontilhada de estrelinhas douradas. Nos outros altares só ruínas: rocas, cabeças, braços, troncos de imagens, tapetes ruídos.

O sacristão, um velho encurvado, escuro, enfiado numa sobrecasaca esverdeada, tão vetusta como o dono, perguntou-me se eu não queria ir á sacristia ver o retrato da senhora D. Tereza de Jesus Perpetua Corte Real, fundadora do convento da Luz, no Arraial do Tijuco. Acedendo ao pedido, entramos na sacristia, estrito cubículo improvisado, de assoalho carcomido, cheio de velho andores, santos, guiões, ciriais, cruzes, opas e brandões. Na parede uma figura de velha trajada de freira, as mãos postas em atitude de prece, olhos místicos, enevoados e tristes.

Enquanto o sacristão se retirava para a nave central da capela, deixei-me cair em um banco envolvido pela tristeza daquela igreja, que eu, em pequeno ouvira de uma velha escrava, acudia-me nitidamente a memória.

Era pelas nova horas da manhã de 1º de novembro de 1755. Como era dia de Todos os Santos, as igrejas de Lisboa achavam-se cheias de fieis, ouvindo a missa, num repique alegre dos sinos.

Subitamente um ruído subterrâneo, como o rodar longínquo de uma carruagem, foi se tornando cada vez mais pronunciado e horrível. O solo, agitado por medonhas convulsões, como um mar encapelado, entreabre-se em fendas sinistras e as casas desmoronam-se como navios perdidos. Línguas de fogo, saídas da terra, iam consumindo os edifícios, o fogo alastrava-se num crepitar medonha, até o Tejo, cujas águas crescendo, crescendo sempre, numa ameaçadora Inundação, parecida ir engolir a cidade.

Era o dies irac! Pensava o povo. Sabia-se que o Márquez de Pombal odiava os jesuítas, e que só esperava ocasião propícia, para dar-lhes um golpe de morte. Era Deus irritado que escrevera o Mane, Tecel, Phares do ímpio reinado de D. José I, diziam.

Estabeleceu um pânico terrível. As portas das casas, dos palácios e das igrejas vomitavam para as ruas mulheres alucinadas, aos gritos, homens aterrados, crianças, velhos, pobres, ricos, fidalgos e lacaios, irmanados no mesmo terror, correndo alguns para as poucas igrejas que ainda estavam de pé, pisando escombros e cadáveres, num brado uníssono:

- Misericórdia!... Misericórdia, Senhor!...

Milhares de pessoas haviam perecido na terrível hecatombe. Na confusão do pânico, entre as preces lançadas numa velha igreja de Lisboa sobressaiu a de uma fidalga da família Corte Real, prostrada diante de um altar da Virgem.

- Senhora, por Vosso amado Filho, piedade! Se eu me salvar, erguer-vos-ei, em qualquer parte, uma igreja! Misericórdia!

Com uma convulsão do solo, a igreja estremece, abre-se uma fenda lateral e uma flecha de luz vai iluminar o semblante da Virgem. Como o templo ameaçava ruir, as pessoas, que lá se achavam, saíram correndo para a rua, enquanto a fidalga, abraçando-se com a imagem da Senhora, desaparecia na confusão ululante. Misericórdia! Misericórdia!

Estava detido na prisão de Limoeiro meu tio trisavô Felisberto Caldeira Brant, Contratador de Diamantes do Tijuco, perseguido pelo Márquez de Pombal. Tendo desabado a prisão, em consequência do terremoto, Caldeira subira do terraço do edifício e passeando impávido no meio dos horrores da desolação e do incêndio geral, bradava como se fosse o gênio da maldição.

- Ladrões! Restitui o dinheiro que me roubaste!

Apresentou-se depois ao Márquez de Pombal referindo o acidente e pedindo-lhe que lhe indicasse onde devesse residir. Pombal admirou se desse procedimento leal, porque se tinham evadido todos os outros presos, que escaparam de catástrofes. Referiu o ocorrido a diversos brasileiros de destaque, residentes em Lisboa. Estes aproveitaram o ensejo para intercederem pelo infeliz Caldeira, demonstrando sua inocência e a intriga de que fora vítima.

O Márquez o deu liberdade e ordenou que se procedesse á liquidação de suas contas e ao sequestro de seus bens. Gravemente doente, após cinco anos de prisão, Felisberto Caldeira retirou-se para Caldas (não deu para lê, documento rasgado)... perto de Lisboa e ali faleceu. O governo português nunca indenizou os descendentes dos Caldeiras das grandes somas que injustamente sequestrou (Memórias do Distrito Diamantino”, de Joaquim Felício dos Santos).

D. Tereza de Jesus, embarcando para o Brasil, no ano seguinte ao terremoto, cumpriu a sua promessa, fundando, no Arraial do Tijuco, um recolhimento de Órfãs e meninos expostos, com uma capela, sob o orago de sua salvadora, Nossa Senhora da Luz, a mesma imagem salva do terremoto.

Velhos troncos de muitas famílias norte mineiras aí receberam as primeiras luzes, á sombra do claustro. Depois mãos profanas tocaram naquele monumento histórico, mutilando-o, quase convertendo em ruínas.

O sacristão, veio-me avisar que já era perto das cinco horas, era preciso fechar a porta da igreja. Retirei-me, descendo a rua em companhia de Artur França, que estava passeando por ali.

Agora me informam, a capela da Luz está hoje reformada, pintada de novo, restabelecida em seu antigo aspecto.

Capela Nossa Senhora da Luz
AF1QipMcAdw3vVkbNM7wiT5_xkg-ibyEQ_uQWtKuBGg3=s1600-w400 (400×500) (googleusercontent.com)


Voz de Diamantina, pág.2, nº 28, 27 de Abril, Diamantina/MG, 1958  

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