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quinta-feira, 8 de agosto de 2024

O CARRASCO FORTUNATO

TEMPOS IDOS

CIRO ARNO

Corria o ano de 1840, em Diamantina. No Ateneu de São Vicente de Paulo, após as aulas, ás quatro horas da tarde, o Dr. Trres, Juiz Municipal, professor do estabelecimento, disse ao aluno Augusto Caldeira:

- Vá a cadeia e diga ao carrasco Fortunato, por minha ordem, que tire do oratório o paciente, pois acabo de interpor um recurso de graça para Sua Majestade o Imperador.

Chamava-se Oratório o quarto reservado em que permanecia o condenado á morte, nos três dias anteriores á execução da sentença na forca, ao lado de um sacerdote, e o acompanhava depois ao patíbulo.

O paciente era um crioulo moço, papudo, meio idiota, escravo, que assassinara o senhor, numa fazenda ao Norte de Minas. Havia uma lei no ano de 1835 chamada Lei Negra, severíssima para os crimes desta natureza. O escravo que matasse ou tentasse matar o senhor, o feitor, ou pessoa da família dos mesmos, era irrevogavelmente condenado á morte, sem o recurso da apelação.

O aluno saiu a cumprir o mandato do professor. A cadeia era então na descida para o largo do Rosário, no fim do beco, que ainda hoje se chama Beco da Cadeia, num edifício depois demolido. Ao receber o recado do Juiz o carrasco, negro robusto e horrendo, tirou da boca o cachimbo, que fumava, e exclamou, num sorriso bestial:

- Não adianta nada! O Imperador não perdoa. Já tenho visto pedidos assim, sempre negados...

Paciência! O trabalho tem de ser adiado...

E mostrando a mão direita encolhida, continuou:

- Um patife de um condenado me aleijou desta mão, em um golpe de navalha. Por isso só posso trabalhar com a esquerda.

teatro+santa+isabel+e+igreja+do+rosário.jpg (320×220) (bp.blogspot.com)


Parecendo contrariado, o carrasco transferiu o réu, do oratório para a prisão comum. O aluno disse então ao infeliz, que parecia aparvalhado:

- Tenha esperança. O Juiz mandou pedir perdão para você ao Imperador.

O Carrasco Fortunato José tinha uma lúgubre história. Natural de Lavras, na Província de Minas, fora escravo de João de Paiva, cuja viúva, D. Custódia, o criara com excepcional bondade e carinho. Mas o moleque, era um bandido, de instintos perversos. Admoestado frequentemente, mas com brandura, pela excelente senhora, tomou-lhe ódio e um dia, enfurecido, prostou-a morta, a pauladas. Foi isto em 1833, contando o miserável vinte e cinco anos de idade.

Preso o criminoso, julgado e condenado á morte, foi recolhido á cadeia de Ouro Preto. Mas a sentença não foi executada, sendo comutada a pena na de prisão perpetua, por acordo com o assassino, que se obrigou a servir de carrasco, na Província de Minas.

Nos primeiros tempos de seu ofício, dormia ele em comum com os demais presos, inclusive aqueles que tinha de enforcar. Mas na cadeia de Pitangui, um dos sentenciados á morte deu-lhe durante o sono, profundas navalhadas no ventre, da qual ficou aleijado. Desde então dormia sempre separado dos presos condenados á pena última.

Era um crioulo alto, musculoso e forte, sempre a fumar um cachimbo com canudo de prata. Não se pode dizer que seu emprego fosse rendoso pela execução de um penitente, recebia doze mil e oitocentos réis, quando havia parte, e quatro mil oitocentos réis, quando o pagamento era feito pela municipalidade. Além disto, davam-lhe uma garrafa de vinho do Porto. Nessa época (1849) eram muito exíguos os vencimentos anuais dos carrascos da França, que, em compensação, eram homens livres: executor de Paris, 8.000 francos, de lyão, 5.000; de Ruão e Bordeus, 4.000; de cidades de mais de cinquenta mil almas, 3.500; de cidades de vinte mil almas ou menos, 2.000. (“O meu ofício é matar.” Memórias do carrasco Sanson. Volume 1: Página 121).

Fortunato era o carrasco oficial da Província de Minas. Onde havia uma sentença de morte a executar, era ele mandado, escoltado por soldados, pois continuava condenado a prisão perpetua. Diziam que ele executara o pai e a mãe em São João Del Rei, mas o mesmo protestava contra essa imputação, dizendo que tais execuções haviam sido feitas por seu antecessor Antônio de Rezende.

O recurso de graça do Dr. Torres foi indeferido pelo Imperador, nos termos regimentais: “O réu é indigno de minha imperial clemência”. O crime fora cometido com requintes de perversidade, por um escravo contra seu senhor. O perdão seria um mau incentivo para os outros escravos.

O Dr. Torres, que solicitara o perdão do desgraçado, molhado pelas lágrimas de uma irmã deste, que era ama de leite de um seu filho, teve de mandar cumprir a lei. Determinou que o penitente voltasse para o Oratório.

O carrasco Fortunato escoltado por soldados foi ao Rio Grande verificar a solidez da forca, que estava armada próximo a atual rua do Areião, perto da Lapa do Cláudio.

No dia da execução, o penitente foi retirado do Oratório, ás oito horas da manhã, acompanhado do padre Albergaria, carrasco, autoridades judiciárias. Saiu o lúgubre préstito, com o Dr. Torres, a cavalo, grande massa do povo, subiu pelo Beco da Cadeia, entrou no Largo do Bonfim, seguindo até a Igreja de Santo Antônio, que anos depois, foi Sé do Bispado.

Na igreja o penitente assistiu á missa dos agonizantes, até antes da elevação da hóstia, quando foi retirado para a sacristia, conforme era praxe. Terminada a missa, ao sair da igreja o préstito, ia em frente do condenado um esquife coberto com um pano preto, (onde o cadáver seria recolhido), carregado por quatro negros.

O penitente ia com a corda no pescoço, ao lado do carrasco. O padre Albergaria, com um crucifixo na mão, o ia confortado:

- Filho, lembra-te de que daqui a pouco estás na eternidade! Arrepende-te de teus pecados! Pede perdão a Deus! Pede perdão ao próximo dos escândalos que lhe deste!... Misericórdia!...

E o infeliz, a tremer desvariado, ia repetindo:

- Gente tudo me perdoe!... Gente tudo me perdoe!...

E beijava o crucifixo que o sacerdote lhe apresentava.

O cortejo fúnebre seguiu pela atual rua atrás da Sé, passou ao lado da Intendência de Cima (Rancho de Tropas), entrou na Cavalhada Nova e desceu pela rua do Burgalhau, parando nesse percurso umas três ou quatro vezes para o escrivão ler a sentença de morte.

O Dr. Torres, a cavalo, com o semblante carrancudo... Mulheres do povo choravam.

- Gente tudo me perdoe!... Gente tudo me perdoe!... (ia repetindo o pobre negro).

- Filho invoca a misericórdia divina!... Filho, arrepende-te de teus pecados!... Daqui a pouco estarás na presença de Deus, na eternidade!...

Ao chegar ao Rio Grande, ao pé da forca, o préstito parou. O escrivão leu, pela última vez, a sentença de morte. Havia um silêncio tumular.

Soldados cercaram o patíbulo. Fortunato amarrou as mãos do paciente atrás das costas, mandou-o subir a escada da forca e foi atrás, segurando a corda que o enlaçava pelo pescoço. Lá em cima fê-lo assentar-se na trave; em argolas de ferro nesta fincadas, amarrou as duas pontas da corda, que o infeliz tinha no pescoço; vedando-lhe os olhos com um lenço branco que lhe tirou do bolso, oferecido pela irmã, assim como a camisa, com que ia morrer.

Lá embaixo, no meio do silêncio tumular, o Padre Albergaria começou a rezar pausadamente, em voz alta, o “Creio em Deus Padre”, que o penitente ia repetindo, entre soluços:

- Creio em Deus Padre!

-Creio em Deus Padre!

- Todo Poderoso!

- Todo Poderoso!

- Criador do céu e da terra!

-Criador do céu e da terra!

Quando o sacerdote chegou as últimas palavras da oração “a vida eterna”, virou as costas para a forca, tapando o rosto com as mãos. Então o carrasco empurrou a condenado que ficou pendurado pelo pescoço, montou-lhe nos ombros, segurando a trave com as mãos; forcejou para baixo, com todo o peso de seu corpo hercúleo ... Os pés da vítima se agitaram convulsivamente; uma mancha de sangue vermelhejou o lenço que lhe cobria o rosto.

Fortunato, baixando um pouco a cabeça, auscultou o peito do condenado, verificando se o coração ainda batia... Afinal, com um golpe de faca, cortou a corda. O cadáver caiu ao chão, com um som surdo como um fardo. Quatro negros apanharam o corpo, que colocando ao esquife, levando-o para o cemitério dos enforcados, á Rua do Burgalhau.

Estava satisfeita a justiça dos homens!

Voz de Diamantina, pág;2,  nº 31, 1 de Maio, Diamantina/MG, 1958.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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