TEMPOS IDOS
CIRO ARNO
Corria o ano de
1840, em Diamantina. No Ateneu de São Vicente de Paulo, após as aulas, ás
quatro horas da tarde, o Dr. Trres, Juiz Municipal, professor do estabelecimento,
disse ao aluno Augusto Caldeira:
- Vá a cadeia e
diga ao carrasco Fortunato, por minha ordem, que tire do oratório o paciente,
pois acabo de interpor um recurso de graça para Sua Majestade o Imperador.
Chamava-se
Oratório o quarto reservado em que permanecia o condenado á morte, nos três
dias anteriores á execução da sentença na forca, ao lado de um sacerdote, e o
acompanhava depois ao patíbulo.
O paciente era
um crioulo moço, papudo, meio idiota, escravo, que assassinara o senhor, numa fazenda
ao Norte de Minas. Havia uma lei no ano de 1835 chamada Lei Negra, severíssima
para os crimes desta natureza. O escravo que matasse ou tentasse matar o
senhor, o feitor, ou pessoa da família dos mesmos, era irrevogavelmente condenado
á morte, sem o recurso da apelação.
O aluno saiu a
cumprir o mandato do professor. A cadeia era então na descida para o largo do
Rosário, no fim do beco, que ainda hoje se chama Beco da Cadeia, num edifício depois
demolido. Ao receber o recado do Juiz o carrasco, negro robusto e horrendo, tirou
da boca o cachimbo, que fumava, e exclamou, num sorriso bestial:
- Não adianta
nada! O Imperador não perdoa. Já tenho visto pedidos assim, sempre negados...
Paciência! O trabalho
tem de ser adiado...
E mostrando a mão
direita encolhida, continuou:
- Um patife de
um condenado me aleijou desta mão, em um golpe de navalha. Por isso só posso
trabalhar com a esquerda.
teatro+santa+isabel+e+igreja+do+rosário.jpg (320×220) (bp.blogspot.com) |
Parecendo
contrariado, o carrasco transferiu o réu, do oratório para a prisão comum. O
aluno disse então ao infeliz, que parecia aparvalhado:
- Tenha
esperança. O Juiz mandou pedir perdão para você ao Imperador.
O Carrasco
Fortunato José tinha uma lúgubre história. Natural de Lavras, na Província de
Minas, fora escravo de João de Paiva, cuja viúva, D. Custódia, o criara com
excepcional bondade e carinho. Mas o moleque, era um bandido, de instintos
perversos. Admoestado frequentemente, mas com brandura, pela excelente senhora,
tomou-lhe ódio e um dia, enfurecido, prostou-a morta, a pauladas. Foi isto em
1833, contando o miserável vinte e cinco anos de idade.
Preso o criminoso,
julgado e condenado á morte, foi recolhido á cadeia de Ouro Preto. Mas a
sentença não foi executada, sendo comutada a pena na de prisão perpetua, por
acordo com o assassino, que se obrigou a servir de carrasco, na Província de
Minas.
Nos primeiros tempos
de seu ofício, dormia ele em comum com os demais presos, inclusive aqueles que
tinha de enforcar. Mas na cadeia de Pitangui, um dos sentenciados á morte
deu-lhe durante o sono, profundas navalhadas no ventre, da qual ficou aleijado.
Desde então dormia sempre separado dos presos condenados á pena última.
Era um crioulo
alto, musculoso e forte, sempre a fumar um cachimbo com canudo de prata. Não se
pode dizer que seu emprego fosse rendoso pela execução de um penitente, recebia
doze mil e oitocentos réis, quando havia parte, e quatro mil oitocentos réis,
quando o pagamento era feito pela municipalidade. Além disto, davam-lhe uma garrafa
de vinho do Porto. Nessa época (1849) eram muito exíguos os vencimentos anuais
dos carrascos da França, que, em compensação, eram homens livres: executor de
Paris, 8.000 francos, de lyão, 5.000; de Ruão e Bordeus, 4.000; de cidades de
mais de cinquenta mil almas, 3.500; de cidades de vinte mil almas ou menos,
2.000. (“O meu ofício é matar.” Memórias do carrasco Sanson. Volume 1: Página
121).
Fortunato era o
carrasco oficial da Província de Minas. Onde havia uma sentença de morte a
executar, era ele mandado, escoltado por soldados, pois continuava condenado a prisão
perpetua. Diziam que ele executara o pai e a mãe em São João Del Rei, mas o
mesmo protestava contra essa imputação, dizendo que tais execuções haviam sido
feitas por seu antecessor Antônio de Rezende.
O recurso de
graça do Dr. Torres foi indeferido pelo Imperador, nos termos regimentais: “O
réu é indigno de minha imperial clemência”. O crime fora cometido com requintes
de perversidade, por um escravo contra seu senhor. O perdão seria um mau
incentivo para os outros escravos.
O Dr. Torres,
que solicitara o perdão do desgraçado, molhado pelas lágrimas de uma irmã deste,
que era ama de leite de um seu filho, teve de mandar cumprir a lei. Determinou que
o penitente voltasse para o Oratório.
O carrasco
Fortunato escoltado por soldados foi ao Rio Grande verificar a solidez da
forca, que estava armada próximo a atual rua do Areião, perto da Lapa do Cláudio.
No dia da
execução, o penitente foi retirado do Oratório, ás oito horas da manhã,
acompanhado do padre Albergaria, carrasco, autoridades judiciárias. Saiu o lúgubre
préstito, com o Dr. Torres, a cavalo, grande massa do povo, subiu pelo Beco da
Cadeia, entrou no Largo do Bonfim, seguindo até a Igreja de Santo Antônio, que
anos depois, foi Sé do Bispado.
Na igreja o
penitente assistiu á missa dos agonizantes, até antes da elevação da hóstia,
quando foi retirado para a sacristia, conforme era praxe. Terminada a missa, ao
sair da igreja o préstito, ia em frente do condenado um esquife coberto com um
pano preto, (onde o cadáver seria recolhido), carregado por quatro negros.
O penitente ia
com a corda no pescoço, ao lado do carrasco. O padre Albergaria, com um crucifixo
na mão, o ia confortado:
- Filho,
lembra-te de que daqui a pouco estás na eternidade! Arrepende-te de teus
pecados! Pede perdão a Deus! Pede perdão ao próximo dos escândalos que lhe
deste!... Misericórdia!...
E o infeliz, a
tremer desvariado, ia repetindo:
- Gente tudo me
perdoe!... Gente tudo me perdoe!...
E beijava o
crucifixo que o sacerdote lhe apresentava.
O cortejo
fúnebre seguiu pela atual rua atrás da Sé, passou ao lado da Intendência de
Cima (Rancho de Tropas), entrou na Cavalhada Nova e desceu pela rua do Burgalhau,
parando nesse percurso umas três ou quatro vezes para o escrivão ler a sentença
de morte.
O Dr. Torres, a
cavalo, com o semblante carrancudo... Mulheres do povo choravam.
- Gente tudo me
perdoe!... Gente tudo me perdoe!... (ia repetindo o pobre negro).
- Filho invoca
a misericórdia divina!... Filho, arrepende-te de teus pecados!... Daqui a pouco
estarás na presença de Deus, na eternidade!...
Ao chegar ao
Rio Grande, ao pé da forca, o préstito parou. O escrivão leu, pela última vez,
a sentença de morte. Havia um silêncio tumular.
Soldados
cercaram o patíbulo. Fortunato amarrou as mãos do paciente atrás das costas,
mandou-o subir a escada da forca e foi atrás, segurando a corda que o enlaçava
pelo pescoço. Lá em cima fê-lo assentar-se na trave; em argolas de ferro nesta
fincadas, amarrou as duas pontas da corda, que o infeliz tinha no pescoço;
vedando-lhe os olhos com um lenço branco que lhe tirou do bolso, oferecido pela
irmã, assim como a camisa, com que ia morrer.
Lá embaixo, no
meio do silêncio tumular, o Padre Albergaria começou a rezar pausadamente, em
voz alta, o “Creio em Deus Padre”, que o penitente ia repetindo, entre soluços:
- Creio em Deus
Padre!
-Creio em Deus
Padre!
- Todo
Poderoso!
- Todo
Poderoso!
- Criador do céu
e da terra!
-Criador do céu
e da terra!
Quando o
sacerdote chegou as últimas palavras da oração “a vida eterna”, virou as costas
para a forca, tapando o rosto com as mãos. Então o carrasco empurrou a
condenado que ficou pendurado pelo pescoço, montou-lhe nos ombros, segurando a
trave com as mãos; forcejou para baixo, com todo o peso de seu corpo hercúleo ...
Os pés da vítima se agitaram convulsivamente; uma mancha de sangue vermelhejou
o lenço que lhe cobria o rosto.
Fortunato,
baixando um pouco a cabeça, auscultou o peito do condenado, verificando se o coração
ainda batia... Afinal, com um golpe de faca, cortou a corda. O cadáver caiu ao
chão, com um som surdo como um fardo. Quatro negros apanharam o corpo, que
colocando ao esquife, levando-o para o cemitério dos enforcados, á Rua do
Burgalhau.
Estava
satisfeita a justiça dos homens!
Voz de Diamantina,
pág;2, nº 31, 1 de Maio, Diamantina/MG,
1958.
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