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segunda-feira, 18 de abril de 2022

GARIMPO NAS DENTADURAS DE OURO

 O "Neguinho" , ou Focinho de Porco, na boca dos moleques, era um tipo exótico que perambulava pelas ruas de Diamantina, na máxima preocupação de agourar os doentes: dizem mesmo os supersticiosos que a sua passagem pela rua onde morava algum doente era sinal que o freguês tinha infalivelmente de arrumar as malas para o outro mundo.

 Seria louvável, entretanto, se, como o Avelino, se entregasse a humanitária ação de fazer quarto ao defunto ou cantar o Bendito; mas, pelo contrário, farejador de defunto rico, fazia na vinda a profissão de agourar, somente para pegar uns bons cobres da empresa funerária, porque além de dar os passos para o enterro, era também de dar os passos para o enterro, era também sacristão da igreja do Rosário, depositária outrora de pepitas de ouro e picuás de diamantes que os escravos punham nas salvas nos dias de festas.

Diamantina- Imagem da internet

 Um sinal muito conhecido nas rodas dos sacristães, de defunto pobre, era quando os sino das almas da velha catedral badalava sozinho, compassadamente, num dobre rouquenho e triste; nesse dia, que era de folga para o "Neguinho", porque não dava confiança ao cheiro de alecrim, entendia de bancar o doido, andando pelas ruas metido num esverdeado "croizé", com camisa de mulher, de tira bordada, cartola á Rio Branco, e nos olhos uns grandes óculos de aro de tartaruga.

 Tipo feíssimo, de estatura pequena com uma boca afunilada e saliente que valeu o apelido de "Focinho de Porco", e uns bigodes desalinhados e sujos, sempre tresandando a creosôto,e ra uma sujeito que me causava pavor, muito embora tivesse também de receber das suas mãos os chorados dez tostões de registro de óbito; por isso não deixava de ser um popular tipo de rua muito conhecido tanto mais quanto da sua vida se contam as histórias, mais repugnantes como por exemplo, a de cavar as sepulturas para tirar o ouro das dentaduras das caveiras e o vender aos dentistas.

 Quanta moça bonita que tem na boca dente de ouro deve haver por aí, sorridente e satisfeita sem saber que usa resto de defunto!...     

 Numa hora destas, ao ler esta crônica, há de alguma ficar bem desafinada e numa contração melindrosa, com a boca fechada para que ninguém o veja, dirá intimamente: "Meus Deus!... Que horror!... Será o meu?"

 Fora a gorjeta de quinhentos réis que arranjava de cada óbito, ganhava o "Neguinho", como sacristão, a miserável quantia de oito mil réis por mês; entendeu por isso de criar galinhas dentro da igreja.

 Em certa ocasião no dia da procissão de Nossa Senhora do Rosário, verificaram que o "Neguinho" chocava galinhas dentro do andor, isto mesmo depois que andaram com a Santa pelas ruas e que ouviram com espanto, o piado dos pintos que, alvoraçados, voavam dos esconderijos dos enfeites, fato que confessou e que até hoje não nega, esfregando as mãos e dando boas gargalhadas.

Macau Diamantina-MG - Imagem da internet

 Companheiro de Gabriel "Badalo" e inimigo de Avelino, pousou também as suas asas de ave agourenta na porta do si elegeu chegando á imortalidade, fora esse ideal pecaminoso, pela asquerosa mania de cavar o ouro das dentaduras das cavernas, qualidade excêntrica que deverá ser repelida pelo "Capitão" e combatida pelo "Bispo", quando estiverem discutindo sobre a liderança da sua gloriosa agremiação.

 - Um cérebro tão desequilibrado, dirá o "Bispo", com a sua acatada autoridade, não pode representar o pensamento da nossa pujante classe de tipos populares!

 - Seja derrotado o "Neguinho"!... - retorquirá o "Capitão", cofiando as suas barbichas brancas!...

 Mas serenados os ânimos, pelo menos em espírito, irradiará no salão a voz retumbante do "Chico Guedes", do popularíssimo advogado "Dr. Guedes", como assim se intitulava nos dias de camoecas, e da tribuna fará valer os seus direitos, porque a "imortalidade sublime que conquistou, dirá, por tão extravagantíssima mania, quando não seja realmente um patrimônio de glorias para a sua classe, será a demonstração de uma alma forte que não se deixou amedrontar pela careta das caveiras".

 Tal será a verbosidade do "Dr. Guedes", grande jurisconsulto popular, perante tão douta reunião, que o "Neguinho", repugnante e extravagantíssimo, embora tenha hoje mudado de vida, será sagrado ilustre  "líder" da maioria dos tipos populares de Diamantina!...

FERNANDES, Augusto, Tipos Populares de Diamantina, O "Neguinho", pág. 99-102, editora São Vicente, Belo Horizonte, 1929.

Ler mais: https://contosdediamantina.webnode.pt/news/o-neguinho/

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