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sexta-feira, 14 de outubro de 2022
JOSÉ VIEIRA COUTO DE MAGALHÃES
Um Toque de Voyeurismo1
MÁRCIO COUTO HENRIQUE*
RESUMO
Por muito tempo, duvidou-se da possibilidade de se penetrar na história
íntima dos brasileiros de séculos passados através da leitura de seus diários,
tidos como inexistentes. Entretanto, pesquisas mais recentes têm demonstrado
que essa vontade de se revelar aos outros através da escrita de diários
e de outros registros íntimos também existiu no Brasil do século XIX. Neste
artigo, consideramos que a insuficiência ou a falta de visibilidade dos diários
íntimos no Brasil é, em grande parte, resultado de escolhas efetuadas por
nossos antepassados, que muitas vezes optaram por destruir seus registros
íntimos para não correrem o risco de ter sua vida devassada pela curiosidade
alheia. Ou ainda escolhas de arquivistas e pesquisadores, que por muito
tempo se recusaram a conferir a esse tipo de documentação o status de fonte
histórica. Mais especificamente, analisamos o diário de José Vieira Couto de
Magalhães (1837-1898), importante político e intelectual do Brasil do século
XIX, procurando perceber até que ponto, ao comunicar-se para si mesmo,
o autor também comunica um pouco do mundo em que vivia ou como se
relacionava com esse mundo. Referente ao período de permanência do autor
em Londres (1880-1887), o diário registra seu menoscabo pelas mulheres,
seus sonhos eróticos homossexuais, seus cuidados com o corpo, seu pavor
diante da possibilidade de adoecer, entre outros temas, o que constitui
excelente oportunidade para evidenciarmos a legitimidade da sexualidade
enquanto objeto de pesquisa e reflexão das ciências sociais.
Palavras-chave: Diário íntimo; sexualidade; Couto de Magalhães; intimidade.
Recebido em: 24/08/2005.
Aprovado em: 14/10/2005.
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Márcio Couto Henrique
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Em 1933, o pernambucano Gilberto Freyre chamava a atenção dos
pesquisadores brasileiros para a necessidade de se atentar para o estudo da
“vida doméstica” de nossos antepassados, pois assim “sentimo-nos aos poucos
nos completar: é outro meio de procurar-se o ‘tempo perdido’” (FREYRE,
2003, p. 45). Em todo caso, o autor reconhecia que “penetrar na intimidade
mesma do passado [...] não é fácil em países como o Brasil [...]”, posto que,
segundo ele acreditava:
“aqui o confessionário absorveu os segredos pessoais e de família, estancando
nos homens, e principalmente nas mulheres, essa vontade de se revelarem
aos outros que nos países protestantes provê o estudioso da história íntima
de tantos diários, confidências, cartas, memórias, autobiografias, romances
autobiográficos. Creio que não há no Brasil um só diário escrito por mulher”
(FREYRE, 2003, p. 45).
Talvez influenciados por essa sentença freyreana, nos acostumamos a
pensar que seria praticamente impossível penetrar na história íntima dos
brasileiros de séculos passados através da leitura de seus diários. Entretanto,
pesquisas mais recentes têm demonstrado que “essa vontade de se revelarem
aos outros” através da escrita de diários e de outros registros íntimos também
existiu no Brasil do século XIX.
Em publicação recente, Ana Maria Mauad e Mariana Muaze (2004)
discutem, por exemplo, o diário da Viscondessa do Arcozelo, escrito na segunda
metade do século XIX. Se “só em poucos momentos escreve sobre seus
sentimentos”, a viscondessa revela em seu diário informações preciosas sobre
o cotidiano do Rio de Janeiro de seu tempo, incluindo temas como as condições
de vida da época, a intimidade doméstica, os papéis femininos, a rede de
sociabilidade etc. Muito embora discutam um documento que contradiz a tese
de Freyre de que “não há no Brasil um só diário escrito por mulher”, as autoras
parecem aceitar a sugestão do autor de que a raridade desse tipo de registro
íntimo no Brasil é devido ao fato de que “nossas avós, tantas delas analfabetas,
mesmo quando baronesas e viscondessas, satisfaziam-se em contar os segredos
ao padre confessor e à mucama de estimação” (FREYRE, 2003, p. 45). Assim,
enquanto o católico brasileiro podia recorrer ao confessionário para livrar-se
da culpa de seus desejos íntimos mais sórdidos, ao protestante inglês ou norteamericano
restava o refúgio do papel, o que explicaria a raridade dos diários
íntimos na sociedade brasileira e, por outro lado, sua abundância nos EUA e
Inglaterra do século XIX.
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A raridade dos diários íntimos no Brasil oitocentista não pode ser
explicada em função da recorrência dos devotos ao confessionário. Basta
lembrar que, com a vigência do Padroado, a influência de Roma sobre o Brasil
não foi tão significativa até o século XIX, o que fez com que as diretrizes do
Concílio de Trento (1545-1563) - entre elas a obrigatoriedade do sacramento
da confissão - não fossem aplicadas como a Igreja gostaria. Lembre-se, ainda,
que o número de padres era insuficiente para a realização das chamadas
desobrigas, como eram chamadas as visitas nas quais os eclesiásticos
ministravam os sacramentos aos devotos. Dioceses, prelazias e paróquias
ficavam sem padres por muitos anos e poucos bispos se dispunham a realizar
as visitas pastorais.
Relatando uma visita pastoral de Dom Macedo Costa à localidade de
Abaeté, no interior do Pará, em 1876, o periódico A boa nova apresenta dados
surpreendentes para o sacramento da confissão: “os padres confessavam desde
as quatro horas da madrugada até às 8, e das 4 da tarde até às 10 horas da
noite”2
. O mais sensato é pensar que esses números se explicam muito mais
pelo longo período sem atendimento espiritual por parte dos padres, do que pela
vontade de se revelar ao confessor ou, ainda, pela quantidade de pecados da
população de Abaeté. Por outro lado, a ênfase na confissão revela a utilização
de um mecanismo através do qual “se incita o sujeito a produzir sobre sua
sexualidade um discurso de verdade que é capaz de ter efeitos sobre o próprio
sujeito” (FOUCAULT, 1982, p. 264).
Pode-se dizer que, assim como Foucault observou na Europa do século
XVI, até meados do século XIX a Igreja brasileira “controlou a sexualidade
de maneira bastante frouxa: a obrigação do sacramento da confissão anual,
com as confissões dos diferentes pecados, garantia que não se tivessem
histórias imorais para contar ao padre” (FOUCAULT, 1982, p. 249). Se o
refúgio do eu não era exclusividade do padre confessor, outras formas de se
desvelar o coração eram praticadas por homens e mulheres do período. Para
combater a frouxidão do controle sobre os devotos, a partir da segunda metade
do século XIX alguns setores da Igreja católica brasileira deram início a um
processo de reforma com implicações diretas sobre a formação dos padres e
as práticas religiosas populares.
Esse processo, mais conhecido como “romanização”, tinha como
característica central a tentativa de aplicar efetivamente no Brasil as resoluções
do Concílio de Trento, que, diga-se de passagem, foram reforçadas no Concílio
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Vaticano I (1869-1870). Através da aplicação das resoluções tridentinas, a Igreja
buscava maior vinculação com o Papa e, por outro lado, uma desvinculação do
Padroado Régio e o reforço da hierarquia clerical, o que implicava diminuição
da autonomia usufruída pelos leigos em suas práticas religiosas, principalmente
em torno das irmandades de santos. Só então se pôde observar no Brasil o
aperfeiçoamento de certos mecanismos no interior da instituição eclesiástica
que tinham como objetivos conferir aos padres uma melhor formação, para dar
conta dos “desvios” dos devotos.
A preocupação de D. Macedo Costa com a administração dos
sacramentos, por exemplo, evidencia o que Foucault chamou de “técnicas
minuciosas de explicitação discursiva da vida cotidiana, de auto-exame, de
confissão, de direção de consciência, de relação dirigidos-diretores” (FOUCAULT,
1982, p. 249). Pensadas em seu conjunto, essas técnicas minuciosas
fazem parte do que o autor chamou de “dispositivo de sexualidade”3
, incluindo
os discursos dos bispos em suas cartas pastorais, mecanismos como a confissão
anual obrigatória e organizações leigas dependentes do clero.
Não é demais lembrar que a realização dos chamados “círios civis”,
em Belém do Pará, em que a procissão do Círio de Nazaré ocorreu sem a
participação dos padres, foi motivada por uma questão ligada à moral sexual.
Na manhã de 25 de outubro de 1877, os moradores de Belém se depararam
com a denúncia feita no periódico Diário de Belém, de que numa das noites do
arraial do Círio, foram apresentados quadros com imagens de mulheres nuas.
Indignado com tais notícias, D. Macedo Costa decidiu suspender a festa e
fechar a igreja. Os devotos reagiram arrombando as portas da igreja e realizando,
nos anos de 1878 e 1879, dois “Círios civis”, ou seja, sem a presença do clero
católico (ROCQUE, 1981).
Medidas regulamentares e moralizantes, como a que foi tomada pelo
bispo paraense, também compõem o quadro do “dispositivo de sexualidade”,
neste caso configurando uma rede de relações específicas entre clero e devotos.
O discurso da autoridade religiosa funcionou como o “elemento que permite
justificar e mascarar uma prática que permanece muda” (FOUCAULT, 1982,
p. 244): a vontade, por parte da Igreja, de saber/poder sobre a sexualidade, a
vontade de poder determinar aos devotos a separação entre sagrado e profano,
bem como a separação entre o culto ao corpo vestido da Virgem e o ato de
apreciar as mulheres nuas exibidas no Pavilhão de Flora, no centro da atual
Praça Santuário da Basílica de Nazaré. Ao ser incitado a falar a verdade de si,
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o sexo responde. Mas, ao falar, o consentimento de quem o incitou se confunde
com a inquisição (FOUCAULT, 2003, p. 75).
Preocupada em consolidar um discurso que atingisse as mais tênues e
mais individuais das condutas, penetrando e controlando o prazer cotidiano, a
Igreja deixava clara sua relação com o poder do qual desejava se desvencilhar.
Afinal de contas, sua preocupação com a “moral e os bons costumes” era uma
garantia do sono tranqüilo dos burgueses. Isto tem a ver com a multiplicidade
de correlações de força e os apoios que tais correlações encontram umas nas
outras no jogo que visa a transformar determinado saber num saber/poder sobre
os outros.
Mas, voltando à relação entre a raridade dos diários íntimos no Brasil
oitocentista e a recorrência dos devotos ao confessionário, mais do que concluir
pela inexistência desses registros, parece mais salutar considerar as reflexões
de Le Goff sobre o tipo de documentação que o passado lega à posteridade:
“De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado,
mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento
temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do
passado e do tempo que passa, os historiadores” (LE GOFF, 1992, p. 535).
Podemos pensar então que a insuficiência (ou a falta) de visibilidade
dos diários íntimos no Brasil é, em grande parte, resultado dessas escolhas
efetuadas por nossos antepassados, que muitas vezes optaram por destruir seus
registros íntimos para não correrem o risco de ter sua vida devassada pela
curiosidade alheia. Ou ainda escolhas de arquivistas e pesquisadores, que por
muito tempo se recusaram a conferir a esse tipo de documentação o status de
fonte histórica, de certa forma negando que o documento pudesse ser pensado
enquanto um monumento, “resultado do esforço das sociedades históricas para
impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si
próprias” (LE GOFF, 1992, p. 548)4
.
Com a ampliação da noção de fontes históricas a partir da escola dos
Analles, os diários íntimos, que antes eram pensados como inexistentes,
começam a ser vistos e pensados pelos pesquisadores das ciências sociais no
Brasil no seu justo valor. Surgem então análises de diários-monumentos de
pessoas importantes da história do país, como o do imperador D. Pedro II,
sobre o qual Amaral Lapa afirmou que seria de extrema importância para “nos
conduzir à possibilidade de uma linha de equilíbrio, colocando nas justas
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dimensões a sua personalidade humana e histórica”, permitindo, ao mesmo
tempo, “um juízo mais moderado a respeito dos predicados e mais transigente
relativamente às falhas do monarca” (LAPA, 1976, p. 118). No diário de D.
Pedro II é possível ver, por exemplo, o desabafo de quem foi
“amadurecido pelas responsabilidades e trabalheiras que, prematura e
inconstitucionalmente, jogaram-lhe às costas e que, por ocasião do seu
aniversário, a 2 de dezembro de 1862, provocariam este registro no diário:
Já lá vão 37 anos e que trabalhos tenho tido nos últimos 22! (referia-se aos
22 anos de governo)” (LAPA, 1976, p. 119).
Mas também se passa a valorizar o registro íntimo de pessoas comuns,
cuja existência até então era desconhecida pelos brasileiros, como é o caso do
diário da Viscondessa do Arcozelo, citado mais acima.
Em todo caso, deve-se admitir que nem sempre essa peregrinação ao
mundo interior (GAY, 1999) se desdobrou num desnudamento dos sentimentos
tão intenso quanto o que nos foi revelado através do diário do general Couto de
Magalhães (1837-1898). Por esse aspecto, é possível entender a afirmação de
Maria Helena P. T. Machado, que encontrou o diário no Arquivo do Estado de
São Paulo, de que se trata
“de um tipo de documento praticamente inexistente, ou ao menos muito raro,
na história do Brasil. Referimo-nos ao diário pessoal e íntimo que, contrariamente
à popularidade alcançada pelo gênero na Europa Ocidental e nos
EUA do século XIX, sempre escassearam na nossa sociedade” (MAGALHÃES,
1998, p. 20).
O mineiro José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) foi figura
destacada do Império brasileiro, tendo ocupado o cargo de presidente das
províncias de Goiás (1862-1864), Pará (1864-1866), Mato Grosso (1866-1868)
e São Paulo (1888-1889), além de receber o título de general, por conta de sua
participação na Guerra do Paraguai (1864-1870). Era sócio correspondente do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Sua obra mais importante foi O
selvagem (1876), encomendada pelo imperador D. Pedro II para figurar na
Exposição Universal de Filadélfia, nos Estados Unidos, por ocasião das
comemorações do centenário da independência daquele país. Essa obra colocou
o autor entre os iniciadores dos estudos folclóricos no Brasil, por sua preocupação
em coligir as crenças, costumes e lendas dos primeiros habitantes do país.
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Ao contrário do diário da Viscondessa do Arcozelo, que “só em poucos
momentos escreve sobre seus sentimentos”, ou mesmo de D. Pedro II, que,
segundo Amaral Lapa (1976, p. 128), “sempre foi muito circunspecto no seu
procedimento afetivo, não dando ensejo a atoardas ou ditos”, o diário de Couto
de Magalhães, referente ao período de permanência do autor em Londres (1880-
1887), está repleto de sua intimidade, registrando em detalhes seu menoscabo
pelas mulheres, seus sonhos eróticos homossexuais, seu pavor diante da
possibilidade de adoecer etc. Seu diário nos revela um homem que respondeu à
incessante demanda de verdade que o Ocidente lançou entre nós e nosso sexo.
O diário íntimo de Couto de Magalhães mostra, ao mesmo tempo, um sexo
escondido, posto que aparentemente registrado para permanecer na esfera do
privado, e um sexo incandescente, posto que ávido de falar sobre si e responder
à “petição de saber” que lhe foi imposta há séculos (FOUCAULT, 2003, p. 76).
Dessa forma, Couto de Magalhães estaria mais próximo da preocupação
com o “eu” que caracterizou numerosos burgueses na Europa e nos Estados
Unidos do século XIX. Peter Gay, em seu livro O coração desvelado (1999),
mostra com propriedade os sintomas dessa tendência à introspecção, marcada
pelo crescente interesse científico pelos sonhos, o conhecimento de si, o uso de
drogas, a loucura e as paixões sexuais consideradas desviadas da normalidade
etc., temas comuns na literatura e nos meios de comunicação dos dias de hoje,
mas que também possuem uma história. E os indícios dessa peregrinação ao
mundo interior podem ser encontrados nos inúmeros diários íntimos, confissões
escritas, cartas confidenciais, missivas de amor e ruminações religiosas que os
homens e mulheres de letras encontraram para impor ao futuro determinada
imagem de si próprios.
Essa atitude de desvelar o coração fazia parte de um esforço burguês,
no sentido de “voltar a fazer do mundo um lugar encantado”. O alvo era a
razão iluminista, acusada de - com seu cientificismo frio e sua rebeldia contra a
fé - ter banido do mundo a idéia de mistério e de maravilhoso. Era necessário,
portanto, libertar a imaginação, recuperar a vida interior do homem e desfazer
a secularização do mundo, que haveria de ser reencantado. A imaginação liberta
marcaria o triunfo dos românticos sobre a Idade da Razão (GAY, 1999).
Em todo caso, deve-se observar uma diferença entre o impulso de
introspecção de Couto de Magalhães e o dos autores de diários e autobiografias
europeus. Fora do Brasil nota-se que “em muitos países dezenas de escritores
e políticos preeminentes, artistas e militares apressavam-se a registrar sua vida
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para conhecimento de um público receptivo e, esperavam eles, para uma
posteridade agradecida” (GAY, 1999, p. 119), configurando uma verdadeira paixão
dos burgueses vitorianos pela auto-revelação. Segundo Peter Gay, as Confissões
de Rousseau são uma espécie de paradigma às preocupações desta ordem:
“Rousseau parecia obcecado pela publicação de incidentes saborosos,
especialmente passagens sexuais sórdidas. Sua iniciação precoce ao masoquismo,
que deixou danos permanentes; seu caso pouco convencional com ‘maman’,
Madame de Warens; sua visita a uma cortesã veneziana, que o aconselhou a
abandonar as mulheres e estudar matemática” (GAY, 1999, p. 123).
Com sua atitude abertamente confessional, Rousseau ao mesmo tempo
fascinava e perturbava os espíritos de homens e mulheres dedicados à
introspecção no século XIX.
Ora, se Rousseau tinha como objetivo exibir sua intimidade, mesmo em
seus detalhes mais sórdidos, o mesmo não pode ser dito sobre o diário de Couto
de Magalhães. A preocupação do letrado brasileiro em codificar os trechos
mais comprometedores de seu diário revela isso. Vejam-se, por exemplo, alguns
registros feitos pelo autor:
“Friday 20th August 1880. [...] Hoje cha Recoana yumuncana o me: arama;
inti cha menãn. Ce rak. Inti” (MAGALHÃES, 1998, p. 84).
“De 18 para 19 (1881). [...] Passei a noite toda sonhando [...]. Com o
Timóteo a cena foi a seguinte: iche aput. Reté ame ahe; ce rac. Sant. Ahé
oputá oyum. x. p., e seguimos até um vale úmido de água, e segui depois costa
arriba por um morro, um caminho no meio da mata densa, e no sonho o
caminho me era muito conhecido, porém não o reconheço depois de acordado;
o Timóteo figurava muito mais moço do que ele não é atualmente e
depois perdi-me dele, e inti an. Ahé” (MAGALHÃES, 1998, p. 202-203).
Na primeira citação, o trecho em nheengatú significa: “deram-me um
abraço; não fiz sexo. Meu galho, nada”. E, na segunda: “eu quero muito fazer
sexo com ele, meu galho preto endurecido quer estar escondido no ânus p. [...]
não falei com ele”5
. Como bem observou Maria Helena P. T. Machado, na
introdução ao Diário íntimo, de Couto de Magalhães, mesmo fazendo uso de
outra língua para registrar seus sonhos eróticos homossexuais, o autor conferia
a certas palavras um significado próprio. Por exemplo, a palavra sakanga ou
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rakanga (registrada como rak ou rac no diário) significa galho em nheengatú,
mas ele a utilizava no sentido metafórico de pênis.
A princípio, ele escrevia apenas para si mesmo e o recurso ao nheengatú
e a códigos pessoais para registrar seus sonhos eróticos, por exemplo, o distancia
de atitudes como a de Rousseau, que queria conquistar a atenção do mundo para
suas auto-revelações, mesmo que elas fossem chocantes para a opinião pública.
Em função dessa diferença, Amaral Lapa talvez tenha pensado o diário do
imperador D. Pedro II “como gênero literário, mas num sentido estético
completamente diverso de uma tradição confessional criada por diaristas, como
Gide, Amiel, Rousseau, Santo Agostinho e outros mais” (LAPA, 1976, p. 118).
Amaral Lapa já refletia sobre a intencionalidade dos registros íntimos,
ao afirmar que o diário pode se dirigir a duas direções: na primeira, ele “toma a
condição confidenciosa do que foi escrito apenas para o próprio autor, objetivando
concorrer para a fixação de sua vivência, de suas ações e reações, tendo em
vista um futuro reencontro de lembranças”. Essa parece ser a direção tomada
pelo diário de Couto de Magalhães, tendo em vista que uma de suas preocupações
centrais era acompanhar os sinais do corpo, atento a qualquer possibilidade de
doença, seja ela real ou imaginária. Em outra direção, estão os diários, que
“ainda num entretom confidente, registram aquilo que não transpareceu, o
que ficou obumbrado para os circunstantes, como uma espécie de testemunho
jogado para o futuro, e que, portanto, se dirige para o desconhecido, para
o julgamento histórico. Em ambos há, sempre, um desejo de confessar o
inconfessável” (LAPA, 1976, p. 116-117).
Tanto Foucault quanto Gay nos revelam em suas pesquisas o quanto - a
partir do século XVI (na análise de Foucault) - a sexualidade sai de casa, toma
conta das livrarias, das confissões, das conversas de botequim. “Em torno do
sexo”, cada vez mais “se fala”. Cada vez mais os corpos são mostrados em
atitudes indecorosas e os discursos são carregados de palavras indecentes, seja
em diários íntimos, como o de Rousseau, seja no de Couto de Magalhães. Os
discursos continuam “sujos” para a normalidade. A esse mecanismo de crescente
incitação do falar sobre o sexo, Foucault chama de “colocação do sexo em
discurso” (FOUCAULT, 2003, p. 16). Os que se mostravam demasiadamente
continuavam sendo estigmatizados como anormais e por isso sofriam sanções.
Gay lembra que
“até o fim da Era Vitoriana, o amor dos homens por outros homens, ou das
mulheres por outras mulheres, era visto por muitos como virtualmente
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impensável - quase literalmente, o amor que não ousava confessar seu nome”
(GAY, 1999, p. 195).
Por sua vez, Foucault lembra que foi por volta de 1870 que os psiquiatras
começaram a constituir o homossexualismo, termo cunhado em 1869, como
objeto de análise médica. Os que eram classificados como homossexuais
passaram a ser internados em asilos a fim de serem curados, pois eram
percebidos como loucos, doentes do instinto sexual (FOUCAULT, 1982, p.
233-234). Vivendo em Londres entre 1880 e 18876
, certamente Couto de
Magalhães estava a par da chamada “psiquiatrização do prazer perverso” (FOUCAULT,
2003, p. 100), que tinha como um de seus objetos privilegiados de
saber a figura do adulto perverso, daí talvez a atitude de codificar os trechos de
seus sonhos que revelavam sua homossexualidade.
Segundo Ângela de Castro Gomes, “cartas, diários íntimos e memórias,
entre outros, sempre tiveram autores e leitores” (GOMES, 2004, p. 8). Talvez
mais interessante do que perguntar por que alguém escreve diários íntimos,
seria perguntar o que leva alguém a querer ler o diário íntimo de outra pessoa?
De fato, a princípio, diário é algo que se escreve para ninguém ler, a não ser a
própria pessoa que escreve. O diário é uma conversa consigo mesmo, cujos
intermediários são o papel e a caneta (ou o tinteiro e a pena, ou o teclado). Por
isso, a publicação de diários sempre gera polêmicas, posto que os mesmos são
concebidos como documentos pessoais, aos quais o redator faz “confissões”
que, supostamente, não faria em público (a menos que sejam confissões à moda
rousseauniana).
Muitas vezes, certas confissões registradas nas páginas dos diários
vão de encontro a certas posições que seus autores assumiram em vida, seja
verbalmente, seja nas páginas de suas obras publicadas. Na antropologia, basta
lembrar, entre as mais célebres, as polêmicas causadas pela publicação dos
diários de campo de Malinowski (1997) e Eduardo Galvão (1996)7
.Como bem
lembrou Geertz (1998), a publicação de diários íntimos pode revelar aspectos
da vida do autor que levam os mais conservadores a questionarem “o que é que
as crianças vão pensar?”. Ao revelar verdades outras, a publicação do diário
íntimo profana ídolos, destrói mitos, desestrutura o equilíbrio que sustentava o
“clã”. Por outro lado, as outras verdades reveladas pelas práticas de escrita de
si são um instrumento precioso para se demonstrar as alterações que marcam
a trajetória de um indivíduo ao longo de sua existência.
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Assim, um exercício interessante passa a ser o confronto entre a imagem
pública dos indivíduos, geralmente marcada pela coerência e pela linearidade,
com as diversas temporalidades que evidenciam a fragmentação do indivíduo
na leitura de um diário íntimo, por exemplo. Se, por um lado, as práticas culturais
de produção de si atendem à demanda de uma certa estabilidade e permanência
através do tempo (GOMES, 2004), estar atento às múltiplas possibilidades da
trajetória de um indivíduo é fundamental para não sermos vítimas do que Pierre
Bourdieu (1996) chamou de “ilusão biográfica” - a saber, a crença de que a
vida é algo coerente e linear.
Ao escrever o artigo intitulado “E o pulso ainda pulsa” (HENRIQUE,
2003), tivemos que nos basear na leitura do diário íntimo do general Couto de
Magalhães, publicado em 1998. Assim, pudemos nos voltar para uma faceta
um tanto quanto inusitada do autor. As páginas do diário revelaram um homem
extremamente excêntrico, o que o colocava por diversas vezes em situaçõeslimite,
na medida em que muitos dos registros feitos no diário revelam confissões
que conflitam com a imagem que se criou em torno do autor, mesmo em vida.
Evidentemente, a discussão em torno do diário íntimo de Couto de Magalhães
não tem o mesmo teor da que foi feita a partir da publicação dos diários dos
antropólogos citados acima. Afinal, muito embora o autor se aproximasse de
um trabalho de campo e tivesse a preocupação de estudar as lendas indígenas
“debaixo do mesmo ponto de vista de quem as imaginou” (MAGALHÃES,
1940, p. 163), ele não era propriamente um antropólogo. A antropologia de seu
tempo não lhe permitia desvencilhar-se do evolucionismo e etnocentrismo que
marcam seu texto, em obras como O selvagem, por exemplo.
Por outro lado, o diário de Couto de Magalhães não faz o registro de
seu trabalho ou de sua atividade política como presidente da província, mas sim
de situações do cotidiano. Em todo caso, sua publicação também gerou polêmica,
por razões outras. Na verdade, uma parte do diário já havia sido publicada em
1974, na Coleção Revista de História, referindo-se aos anos de 1887-1890 na
vida do autor. Diante do susto de ver devassada a intimidade de um ícone
familiar, seus familiares logo trataram de censurar a publicação, expurgando-a
de suas passagens mais comprometedoras (MAGALHÃES, 1998, p. 11).
Por tudo isso, ler o diário de Couto de Magalhães não deixa de ser,
como observou Sarah M. Love para o diário de Frida Kahlo, um “ato de
transgressão, um empreendimento com um inevitável toque de voyeurismo”
(KAHLO, 1996, p. 25), posto que o diário é a expressão profundamente pessoal
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dos sentimentos do autor e, pelo menos aparentemente, não foi escrito para ser
publicado.
Passamos a duvidar dessa intencionalidade da não-publicação após ler
o Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca, no qual o autor segue dizendo
que, depois de considerar seu diário terminado, talvez o rasgasse ou o deixasse
na gaveta para que, depois de sua morte, os outros resolvessem o que fazer
com ele. E afirma em seguida: “ou então, pode ser que eu o publique”. Citando
Virginia Woolf, o autor diz que o bom diarista “é aquele que escreve para si
apenas ou para uma posteridade tão distante que pode sem risco ouvir qualquer
segredo e corretamente avaliar o motivo. Para esse público não há necessidade
de afetação ou restrição” (FONSECA, 2003, p. 11).
Segundo Fonseca (2003, p. 11), “os autores de diários, qualquer que
seja a sua natureza, íntima ou anedótica, sempre escrevem para serem lidos,
mesmo quando fingem que ele é secreto. O Samuel Pepys, que codificou o seu
diário, deixou pistas para ser decifrado”. É como se o autor de diários
compartilhasse consigo mesmo aquilo que ele gostaria, na verdade, de discutir
ou afirmar publicamente. No caso de Couto de Magalhães, nota-se que ele
registrava parte dos trechos comprometedores de sua vida em nheengatú,
deixando um largo campo de possibilidades de alguém decifrar ou simplesmente
entender o conteúdo, já que grande parte da população brasileira ainda falava
essa língua até o final do século XIX. Em certo trecho do diário, Couto de
Magalhães afirma: “eu tenho a ambição de fundar alguma coisa que preserve
meu nome do esquecimento” (MAGALHÃES, 1998, p. 112). De certo modo,
além de suas várias obras publicadas, os registros íntimos feitos nas páginas de
seu diário realizaram sua “ambição” de não ser esquecido pela posteridade.
Como, então, ler um diário íntimo sem o constrangimento de saber-se
transgressor, invasor da privacidade alheia? Em nosso caso, interessa ver até
que ponto a conversa do autor consigo mesmo pode ajudar a entender os homens
e mulheres de seu tempo, posto que a crônica de sua vida, registrada no diário,
está emoldurada pela época em que ele viveu. Ao comunicar-se para si mesmo,
Couto de Magalhães também comunica um pouco do mundo em que ele vivia
ou como ele se relacionava com este mundo.
Segundo o perfil pintado pelos autores que escreveram sobre Couto de
Magalhães, ele era um homem de “realizações corajosas e originais”, de vida
“que se desdobra em aventuras, em desbravamentos”, em “lutas reais” (MEIRA,
1987, p. 1). Talvez uma das maiores façanhas do autor tenha sido transportar
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um navio desmontado do rio Paraguai até o Araguaia, pelo meio dos “sertões”,
em dezenas de carros de bois, enfrentando índios hostis, animais ferozes e a
oposição da imprensa, conforme relatado por Sílvio Meira (1987, p. 10). Clóvis
Morais Rego destaca, em sua personalidade, “a invulgar estatura moral e a
bravura das atitudes, o equilíbrio das decisões e a lucidez no exame dos assuntos”
(Morais Rego apud CRUZ, 1968, p. 74). Para outros, ele ficou lembrado como
o general que conseguiu livrar o Brasil da “ameaça” representada pela invasão
dos paraguaios no Mato Grosso, por ocasião da Guerra do Paraguai (1864-
1870), onde “[no] meio de tanta perturbação, a têmpera rígida e a calma do
General Couto de Magalhães foram sempre inalteráveis”8
.
A leitura do diário revela um homem frágil, atemorizado diante da
possibilidade de contrair qualquer tipo de doença e das conseqüências disso
sobre o bom funcionamento de seu corpo. Veja-se, por exemplo, o registro feito
em 21/08/1880:
“[...] Notei de manhã que as fezes, além de serem mais abundantes, nadavam
melhor; urinas perfeitamente transparentes; língua má antes do jantar, o
fastio; contudo, jantei sofrível, e não senti peso no estômago depois do
jantar. [...] Continua ainda um pouco de diferença entre o lado direito e o
esquerdo, sendo o esquerdo o pior; resumo dos sinais para julgá-lo pior:
sensibilidade mórbida da orelha; ponto preto no olho; supurenta pequena da
gengiva; dor às vezes debaixo da espádua esquerda; atrofia leve ou comparativa
do músculo da mama; nevralgias do lado da cabeça; parece que menor
força no braço [...]. Temperatura diversa dessa perna; hemorróidas e pequenas
varizes do ânus desse lado; predisposição para furúnculos e tumores
também desse lado. [...] Tudo isso espero corrigir e curar, e hei de conseguilo
com paciência e perseverança. Sei que é uma coisa difícil pois a medicina
está atrasada, e o melhor recurso que eu tenho é a minha própria observação
e proceder por tentativa” (MAGALHÃES, 1998, p. 85-86).
Para garantir uma vida harmônica, por conta própria o autor revirava
tratados de medicina, clássicos gregos e latinos e se submetia a todo tipo de
experiências dietéticas e medicamentosas. Curiosamente, apesar de muitas
vezes seu diário pintar um quadro de saúde alarmante, o autor não apresentava
nenhuma enfermidade que justificasse tal comportamento. Ele próprio se
mostrava consciente disso, como no registro feito em 04/09/1880:
“passei um dia cheio de cismas, lendo medicina, e uma noite cheia de
ansiedades; atribuo isso ao excessivo calor; entre os sintomas imaginários um
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Márcio Couto Henrique
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havia real, e era o desejo de repuxar o braço esquerdo; afora isso, tudo o mais
era imaginação” (MAGALHÃES, 1998, p. 100-101).
O registro diário de seus cismas, ansiedades e sintomas imaginários
era feito no sentido de facilitar o controle de possíveis doenças ou de situações
que lhe causassem desconforto.
Para além de suas inquietações com o corpo, escondiam-se
preocupações de outra natureza: a sexualidade. Assim, o diário também registra
a preocupação com o bom funcionamento dos órgãos sexuais e os sonhos
homossexuais do autor, cuidadosamente codificados com a utilização do
nheengatú. Neste sentido, a publicação do diário também acrescenta um
contraponto à “invulgar estatura moral” apresentada por Morais Rego, ao mostrar
o universo onírico de Couto de Magalhães quase que exclusivamente povoado
por figuras masculinas.
Chama atenção a forma livre e completamente subjetiva com que o
autor registra seus sonhos, como que a responder à “colocação do sexo em
discurso” de sua época. Imagine-se a situação-limite de ter que viver com uma
mulher por onde passava, tendo que esconder seus sonhos e suas fantasias
com corpos masculinos, num momento em que os homossexuais começam a
ser taxados de loucos e trancafiados em hospícios, passando a ser definidos
como “doentes do instinto sexual” (FOUCAULT, 1982, p. 233-234).
Vivendo em Londres à época em que escreveu esse diário, Couto de
Magalhães tinha uma amante inglesa: Lily Grey. Em todo caso, as referências
a ela são sempre vagas e associadas a questões que comprometiam o equilíbrio
tão desejado pelo autor. Nas palavras dele, os “ataques histéricos” e o constante
“mau-humor” de sua amante inglesa o faziam sentir-se “abatido e com algumas
idéias fúnebres”, levando-o a pensar “que continuar a viver junto com ela é
uma grande tolice” (MAGALHÃES, 1998, p. 119).
Cabe lembrar também que é nesse período que surge a figura do
especialista em higiene, infiltrando-se no interior das famílias, interferindo não
só sobre o corpo, mas também sobre as emoções e a sexualidade dos cidadãos.
A idéia de um corpo saudável estava associada a uma boa conduta moral. O
combate à libertinagem, por exemplo, era movido pela idéia de que ela
enfraquecia as nações. Por isso o médico higienista Pires de Almeida escrevia,
preocupado, que nosso país já “não goza da mesma virilidade” por causa da
perda da potência masculina. Dizia ele:
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“ninguém ignora a reação que exerce o aparelho genital no resto da economia...
Quando os cidadãos não gozam, por assim dizer, de toda sua potência,
os exércitos não gozam, por sua vez de toda sua bravura [...]” (ALMEIDA,
1906 apud TREVISAN, 2002, p. 172).
É interessante o fato de que o general Couto de Magalhães tinha como
uma de suas principais preocupações em suas obras publicadas a “virilidade”
necessária à recém-formada nação brasileira e, nas páginas de seu diário, é
recorrente o registro de suas ereções, bem como o consumo de afrodisíacos ou
estimulantes sexuais como a catuaba, amplamente utilizada no século XIX.
Por registrar temas que não podiam ser discutidos publicamente, as
páginas do diário íntimo permitem a Couto de Magalhães refletir consigo próprio
sobre a fronteira do indizível, que se torna possível de ser dito nas páginas do
diário, ainda assim com todos os cuidados de codificar trechos comprometedores
se ditos ou lidos por outra pessoa. De todo modo, registrando explicitamente
sua intimidade ou utilizando-se de códigos para o registro do indizível, o diário
de Couto de Magalhães transborda de técnicas de saber e de procedimentos
discursivos que Foucault classificou como “regra de imanência”. Ao manifestar
estar sempre atento às mínimas manifestações de seu sexo, Couto de Magalhães
evidenciava estar preso a formas de sujeição e esquemas de conhecimento que
iam muito além de sua individualidade e de sua época, configurando um bom
exemplo de “foco local de poder-saber” (FOUCAULT, 2003, p. 94).
É importante destacar também que a leitura do diário íntimo do autor
não deve ter como objetivo destruir a figura de homem forte, herói da Guerra
do Paraguai, substituindo-a pela imagem de um homem frágil, atemorizado por
doenças imaginárias e atribulações sexuais. Couto de Magalhães era um homem
de seu tempo, e assim devem ser pensadas suas ambigüidades. O que importa
é perceber de que maneira o autor procura ordenar, rearranjar e significar o
trajeto de sua vida no suporte do texto. Nesse sentido, pode-se pensá-lo como
uma espécie de editor de sua própria vida (GOMES, 2004).
Num país como o Brasil, em que foi necessário que a Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC), uma das mais importantes instituições de
pesquisa, elaborasse uma moção a favor dos estudos sobre a sexualidade9
, a
leitura do diário íntimo do general Couto de Magalhães constitui excelente
oportunidade para penetrarmos na história íntima dos brasileiros de séculos
passados, evidenciando, ao mesmo tempo, a legitimidade da sexualidade enquanto
objeto de pesquisa e reflexão nas ciências sociais.
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Márcio Couto Henrique
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303, 2005
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NOTAS
*
Doutorando em Ciências Sociais, no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais do
Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (PPGCS-UFPA).
Endereço eletrônico: marciocouto1@uol.com.br.
1
Este artigo surgiu a partir de dois trabalhos apresentados como requisitos de avaliação final
nas disciplinas A História da Sexualidade de Michel Foucault, ministrada pelo prof. Ernani
Chaves, e Seminários de Tese, ministrada pela profa. Jane Felipe Beltrão, no PPGCS-UFPA,
em 2004. Além dos referidos professores, agradecemos à profa. Laura Moutinho, por suas
críticas e sugestões.
2 A boa nova, Belém, 11/10/1876, p. 3. Para uma discussão sobre as visitas pastorais no Pará do
século XIX, conferir Henrique (1998).
3
Sobre o “dispositivo de sexualidade”, conferir Foucault (1982 e 2003).
4
Ao analisar o diário de Bernardina, filha de Benjamin Constant, Celso Castro observa que
“independentemente dos usos que o diário possa ter para um pesquisador, cabe chamar a
atenção para o fato de que os arquivos históricos [...] também possuem uma história. O que se
guardou para a posteridade é resultado de acasos, seleções e disputas que devem ser considerados”
(CASTRO, 2004, p. 237 - grifos no original).
5
Utilizamos aqui a tradução dos trechos em nheengatú que constam no Diário íntimo organizado
por Maria Helena P. T. Machado (1998).
Um Toque de Voyeurismo
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303 , 2005 303
ABSTRACT
A Touch of Voyeurism
For years many have doubted whether it was possible to delve into the
private history of Brazilians from previous centuries by reading their personal
journals, considered nonexistent. However, recent research has demonstrated
that the desire to reveal oneself to others by keeping diaries and other
personal records also existed in Brazil in the 19th century. In this article we
contend that the insufficiency or lack of visibility of diaries in Brazil resulted
mainly from choice by our ancestors, who often opted to destroy such
personal records to avoid having others shuffle curiously through their
private lives. In other cases, archivists and researchers neglected to acknowledge
and classify such documents as historical sources. More specifically, we
analyze the diary of José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), an important
19th-century Brazilian politician and intellectual, in the attempt to perceive
to what extent the author’s communication of himself also conveyed a little
of the world in which he viewed himself, or how he related to it. Referring
to the time he spent in London (1880-1887), the diary records his belittlement
of women, his homoerotic dreams, his preening, his dread at the thought of
falling ill, and other topics, thus constituting an excellent opportunity to
highlight the legitimacy of sexuality as an object of research and reflection
by the Social Sciences.
Key words: Personal diary; sexuality; Couto de Magalhães; intimacy
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