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quarta-feira, 29 de abril de 2020

fundação da cidade de Diamantina


 O morro de Santo Antônio, em cujo declive estava edificado o Arraial do Tijuco, foi sempre considerado de terras puramente auríferas. É extremado ao nascente pelo vale que banham os córregos São Francisco e o Rio Grande, no sul e ao ocidente pelo Córrego das Bicas e Piruruca, e ao norte segue ondeando graciosamente até perder-se nos vales do Rio das Pedras.   No cimo deliciosa planura, quebrando-se abruptamente pelo lado do sul, e descendo para o oriente em seu declive. Na época de que tratamos, o Tijuco só ocupava o centro da vertente oriental; mas depois foi subindo; estendeu um braço pelas ruas da Glória, Luz e São Francisco, outor pelas ruas das Mercês e da Romana, esses  mostraram-se no alto da planura, que hoje se vê toda rodeada de alegres e pequenas habitações. Conta-se que no ponto mais culminante desta planura elevava-se outrora, ao tempo do descobrimento do Tijuco, um magnífico e gigantesco coqueiro, que se avistava de longe balançando sua soberba ramagem no horizonte. Os índios davam-lhe uma idade fabulosa, e veneravam como uma árvore sagrada, debaixo de cuja sombra reuniam-se os chefes guerreiros, quando tinham de tomar alguma deliberação importante. Obrigados a fugir ante os invasores a sua pátria, a sagrada palmeira caiu no poder destes que a cortaram como objeto de superstição e idolatria, e no lugar plantaram um cruzeiro que tem sido renovado até nossos dias. Era com o sagrado símbolo da redenção, que o ávido português assinalava a suas usurpações. Presentemente a verdade oriental do morro de Santo Antônio está quase toda coberta de edifícios, á exceção somente do ponto mais elevado. Impropriamente denominado Gupiara, que pela escabrosidade e declive rápido e precipitoso do terreno ainda se conserva inabitado. Essa gupiara foi riquíssima em ouro, com quanto só fosse explorada a superfície de seu terreno e os cabeços ou bocas dos seus veeiros, que ainda estão virgens, por se  terem profundado e assim dificultando sua exploração.  Em 1740, quando em consequência da representação que os povos dos distritos dirigiram a El-Rei, se desimpediram algumas lavras auríferas, foi a da Gupiara concedida a uma sociedade chamada da Lavra da Roda, que a explorou por muitos anos até 1752; e para lavrar tirou  um rego d'água do rio das Pedras, de extensão de mais de uma légua, que é o que ainda hoje abastece a cidade.


 Em 1755, Antônio Leal da Rosa e Carlos José Pereira requereram licença para poderem minerar na Gupiara, visto ser lavra  desimpedida, e estarem proibidas as faisqueiras. O fiscal a quem o intendente mandou informar respondeu que convinha dar-se licença para os peticionários usarem de uma mina por baixo do chão de que até o presente se não tem usado, afim não só de tirarem ouro, ,as de fazerem exemplo para os mais que se animassem a fazer semelhantes serviços.   O despacho do intendente foi o seguinte: “Podem os suplicantes dar as minas que forem precisas, com a declaração que os negros sejam feitorizados por homens brancos, sob pena de serem confiscados; ficando outrossim obrigados admitir nas suas minas á força parte dos faiscadores a que as mesmas derem lugar.”  Esta lavra passou depois a ser propriedade de vários outros concessionários, mas por falta de recursos e conhecimento do sistema de mineração  por meio de minas e galeria subterrânea, seus veeiros  nunca foram explorados. O Dr. José Vieira do Couto, encarregado pela Rainha D. Maria I de fazer exames mineralógicos na capitania de Minas em 1796, lastimava com justa razão a ignorância dos mineiros, e o caminho errado que seguiram no método de mineração, incapazes de fazer qualquer trabalho importante. O que ele então dizia é aplicável ao nosso estado atual; porque nossa ignorância, nossos erros infelizmente ainda são os mesmos, e nenhum passo temos dado no conhecimento da mineralogia e na arte de minerar. Na Gupiara do morro de Santo Antônio a jazida ou depósito de ouro é original.  Sua superfície compõe-se de um lastro mais ou menos espesso conforme os lugares, de terras saibrosas, cretáceas e argilosas, de envolta com fragmentos de mica e quartzos, de forma angular, o ouro tem a mesma forma angular, com borda aguda, inteiramente diverso do que se encontra nos leitos dos rios e córregos, e nos terrenos de aluvião, onde as folhetas têm as bordas quebradas e arredondadas, o que mostra ter sido rolado.   Aí ainda se observam os saldos deixados pelas linhas já exploradas, que constituem as cabeças ou saídas dos veeiros que profundavam, e ora serpeiam descobertos em meandros para cima da piçarra, acompanhando os altos e baixos do terreno, ora desparecem por entre fendas que mostram a separação das rochas estratificadas. O estado de nudez destas rochas em alguns lugares e as quebradas das terras em outros indicam o resultado dos estragos lento e sucessivos dos agentes naturais em épocas, que não será possível determinar.” (Dr. Felício dos Santos – Memória sobre o Distrito Diamantino do Serro Frio).
O morro de Santo Antônio, em cuja encosta oriental acha-se edificada a cidade de Diamantina, desce por esse lado até o pequeno córrego, empaticamente denominado Rio Grande, apesar de engrossado pelo São Francisco, que vai apanhar os mananciais que vertem da pitoresca serra fronteira do mesmo nome. O Piruruca o fraldeja pelos lados dos sul e do ocidente, torcendo-se em engraçados meando até a distância de um quarto de légua, onde perde o nome, absorvido pelo Rio Grande.  São belos estes dois córregos descendo plácidos com suas águas cristalinas, que deixam ver o leito de alvíssima areia, estrelado de lindos seixos transparentes e cristalizados, semelhando o diamante, com seus montículos de pedras depositadas nas margens pelos mineiros que exploram lhe o veio, com seus vales adjacentes sempre alcatifados de vivaces flores em todas as estações do ano, como se só conhecessem a primavera. São bem lindos, circulando a Diamantina que desvanece, como a donzela enamorada, do rico colar que cinge-lhe o colo.  Ao norte, o morro de Santo Antônio vai ondeando até perder-se e nivelar-se com os campos do Rio das Pedras. No alto estende-se uma vasta planura, quase toda ocupada por aprazíveis quintas com soberbos pontos de vistas para todos os lados.   Os índios davam-lhe o nome de Ibytyra, que quer dizer monte, outeiro sem mais objetivo, como se fora o monte por excelente. O Ibytyra nesse tempo, antes de ter sido conquistado e demarcado com a cruz ou com o pelourinho, era coberto de uma imensa mata virgem, espessa sombria só habitada por animais bravios ou pelo índio feroz antropófago.   Onde hoje vemos magníficos edifícios existia a humilde taba indiana construída de ramos de palmeiras. Vede as ruas Direita (apesar de ser a mais tortuosa), do Contrato, do Carmo, do Bonfim por aí descia o índio a matar a onça, a pantera, a anta, o jaguar, ocultos nos seus covis, ou caçar o jaburu, o jabuti, e as araras que davam-lhes as lindas plumas de seus cocares; as ruas do Macau, Chafariz, São Francisco, Cavalhada, descendo da Gupiara até o Rio Grande, eram um vasto tremedal com o nome de Tijucupaba, que no tempo das águas alagava-se, tornava-se intransitável e servia como de barreira as feras acossadas pelo índios, que subiam pelo desfiladeiro apertado onde é hoje o arraial de Baixo.     Nos primeiros anos do século passado, uma bandeira de aventureiros portugueses, mamelucos e sertanistas filhos de São Paulo, muitos dos quais talvez saído do arraial da Conceição, que acabavam de estabelecer, que depois foi Vila do Príncipe e hoje cidade do Serro, apercebidos de instrumentos de mineração, vieram atravessando serras, matas, rios caudalosos, e chegando ás bordas do Jequitinhonha, na paragem que hoje tem o nome de Coronel, deram princípios um pequeno, estabelecimento de mineração; mas avexados pelas febres endêmicas que aí soem grassar no tempo das chuvas, provenientes dos detritos vegetais que com as enchentes se depositam e apodrecem nas lezírias, levantaram tendas, seguiram rio abaixo e chegaram no córrego da Itatyba, que batizaram por Santa Maria.  O nome indígena está indicando que os aventureiros aí não se podiam demorar, significa pedregal, por causa dos muitos rochedos que cobrem o solo.  A mineração era, pois, difícil, e quem tinha terrenos ricos e ainda virgens a explorar não perdia tempo quebrando as pedras. Onde se achavam? Era preciso sabe-lo para não perderem o rumo. Mas não traziam bússola, não possuíam relógio, não conheciam as estrelas; e para que? Olhavam para o Itambé que assoberbava-se sobranceiro no horizonte com seu pico sempre coroado de vapores, como o cone gigantesco de um vulcão extinto perfurando as nuvens. Era o granito farol dos viajantes; era o centro de um círculo de sessenta léguas de diâmetro que podiam revolver sem receio de extraviarem-se.   Orientados pela vista do Itambé, deixaram o Jequitinhonha, que não puderam passar; e, dirigindo-se para o ocidente, subiram a serra que, como uma imensa aureola, costeia o rio acompanhando suas voltas e torcicolos. Depois de um dia de jornada penível por terrenos ínvios, fragosos, quase intransitáveis, costeando serras, evitando pause, volcando rios, chegaram á confluência do Piruruca e Rio Grande. Por qual dos dois córregos deviam subir? Não havia razão de preferência. Uns opinavam pela direita, outros pela esquerda; cumpria-se decidir-se a dúvida. Louvaram-se ao acaso.   Desenrolaram á bandeira, que levantaram ao ar; o vento soprava de sudoeste; a flamula voltou-se para esquerda; foi interpretado como um sinal da Providência e os aventureiros seguiram pelo Piruruca acima.   Eram homens ousados e intrépidos esses aventureiros, de vontade constante, pertinaz, inabalável. Cegos pela ambição do ouro, arrostavam os maiores perigos. Não temiam o tempo, as estações, a chuva, a seca, o frio, o calor, os animais ferozes, répteis que davam a morte quase instantânea, insetos que mordiam produzindo a dor da queimadura, e mais que tudo o indômito e vingativo índio antropófago que disputava-lhes o terreno palmo a palmo, em guerra renhida e porfiada, devorando-lhes os prisioneiros. Viajavam por esses desertos, descuidados e imprevidentes, como se nada devessem recear. Para eles não havia bosques impenetráveis, serras alcantiladas, rios caudalosos, precipícios, abismos insondáveis. Se não tinham o que comer, roíam as raízes das árvores, apanhavam os lagartos, as cobras, os sapos que encontravam no caminho; servia-lhes tudo o que era capaz de alimentá-los; se não tinham o que beber, sugavam o sangue dos animais que montavam, mascavam folhas silvestres ou frutas acres do campo. Já eram homens meio bárbaros, quase desprendidos da sociedade, faltando a linguagem dos índios, adotando muitos de seus costumes, seguindo muitas de suas crenças, admirando a sua vida e procurando imitá-los. Muitas serras, muitos rios, muitos lugares que conhecemos com nomes indígenas, foram batizados por eles.  Tais eram, em geral, os primeiros descobridores das ricas minas do Brasil. Como dizíamos, guiados pela sorte, seguiram Piruruca acima. Subiram até quase suas cabeceiras.  A noite caía. Levantaram barracas e ali pernoitaram. No dia seguinte fizeram uma prova. Apanhavam no leito do córrego um saibro grosso, claro, de envolta com pedras miúdas; é o que se chama piruruca em linguagem de mineração e que deu o nome ao córrego; a palavra parece indígena. Os mineiros muitas vezes usam, por semelhança, da palavra canjica, para designarem o mesmo corpo mineral. Lavaram-no e encontraram ouro, muito ouro. Então trataram logo de se estabelecer. Exploraram as margens e conheceram que também eram ricas. Corre a notícia do descoberto.  Chegam outros aventureiros da Conceição e circunvizinhos. O terreno é vasto e prometia acomodar a todos e por isso não aparecem dissenções e rivalidades. A população vai-se aumentando, levantam-se alguns colmados ou ranchos, e o lugar em breve oferece o aspecto de um pequeno arraial. Era costume de nossos antepassados levantarem logo um pelourinho quando se fixavam em qualquer parte com intenção de fundarem um arraial. Desgraçadamente os brasileiros não ignoravam que pelourinho é uma picota que se levanta em um lugar bem público, com uma argola de ferro presa no alto, onde amarram-se os escravos para serem surrados com bacalhau. Nas nossas vilas e cidades ainda se vê esse sinal de barbaria da atualidade. Os nossos aventureiros levantaram o pelourinho na margem do Piruruca, que logo batizaram por Córrego do Pelourinho, denominação que conservou-se por muito tempo e se encontra nos papeis antigos da administração Diamantina. Felizmente, porém, o bom senso do público, ou quer que seja que ignoramos e nem trataremos de investigar, resistir a essa inovação, e hoje o córrego é só conhecido pelo seu nome primitivo. (Dr. Felíico dos Santos - Romance Indígena  - Acaiaca).
ouco tempo depois do estabelecimento desta pequena população uma outra bandeira de aventureiros, seguindo quase o mesmo roteiro da primeira, chegava ao mesmo ponto da confluência do Rio Grande e Piruruca. Não havia mais que hesitar: o lado esquerdo estava ocupado, seguiram pelo direito, Rio Grande cima. Iam fraldejando o morro que os índios denominavam Ibitira, quando esbarraram ante um vasto tremedal que não puderam atravessar, por cima do qual serpeava um pequeno arroio que, nascendo no meio do flanco oriental, ia logo perder-se no Rio Grande, Tijucupaba chamava-se o tremedal, e Tijuco o pequeno arroio, que quer dizer lama.    Conta-se um formoso galheiro, já de longe acossado por um caçador da horda aventureira, fora morto atolado ao Tijucapaba; tirado para fora, encontrara-se alguns folhetas de ouro no barro que enlameava. Verdadeira ou falsa anedota, o certo é que tinha-se descoberto no Ibitira uma rica lavra.   As terras auríferas estendiam-se desde a raiz do morro até o alto da Gupiara, depois espraiavam-se pelas margens e leitos do Rio Grande e São Francisco.   Eram tão ricas que se catavam folhetas sem o trabalho de lavagem.  


  O Córrego do Tijuco ainda era muito rico e naturalmente, por que aí corriam as águas nativas e fluviais do flanco do morro: era como um  bolinete formado pela natureza, onde se revolviam as terras auríferas que, desfeitas, corriam, ficando depositado no fundo o ouro, como matéria mais pesada. A horda aventureira, com o descoberto da lavra, fez o seu primeiro estabelecimento na margem direita do Tijuco, no lugar a que deram o nome de Burgalhau, que ainda hoje, conserva e cuja significação e etimologia ignoramos.  Com a notícia das riquezas do novo descoberto, como sucedera no Piruruca, chegaram outros mineiros, e a população foi-se aumentando e derramando pela vertente do morro. Eram pois duas povoações ainda nascentes, ainda fracas, ainda baldas de recursos e de forças insuficientes para, no meio de um deserto infectado de inimigos encarniçados, os indígenas, poderem subsistir separados. Convinha que se reunissem. O Tijuco, embora mais recente, era mais populoso, oferecia lavras mais ricas, mais vastas, mais duradouras; o Piruruca alegava a prioridade de seu descoberto e da ereção do pelourinho. Mas a utilidade prevaleceu sobre a etiqueta o Piruruca cedeu a sua população passou-se para o Tijuco: o pelourinho foi arrancado; ignoramos em que lugar fora novamente levantado: - não temos o menor empenho em sabe-lo. Com este acréscimo de população de indústria, o Tijuco começou a tornar-se importante. Todo o Burgalhau cobriu-se de colmados. Levantou-se um mais alto, mais bem construído, mais espaçoso, que destinou-se para capela, escolheu-se Santo Antônio para padroeiro; consagrou-se-lhe a capela e veio do arraial da Conceição um sacerdote que ficou servindo de cura.   O fisco já de há muito lançava olhares ávidos sobre o Tijuco: Logo que viu que aí erguera-se uma capela, procurou um cobrador dos quintos reais; quando viu o sacerdote partir, mandou o cobrador após, eles chegaram ao mesmo tempo. Assim o Tijuco constituía-se arraial, tomando o nome do córrego junto do qual fora fundado; o Ibitira ficou-se chamando morro de Santo Antônio.   (Dr. Felício dos Santos – Romance indígena – Acayaca.)




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