O morro
de Santo Antônio, em cujo declive estava edificado o Arraial do Tijuco, foi
sempre considerado de terras puramente auríferas. É extremado ao nascente pelo
vale que banham os córregos São Francisco e o Rio Grande, no sul e ao ocidente
pelo Córrego das Bicas e Piruruca, e ao norte segue ondeando graciosamente até
perder-se nos vales do Rio das Pedras. No cimo deliciosa planura,
quebrando-se abruptamente pelo lado do sul, e descendo para o oriente em seu
declive. Na época de que tratamos, o Tijuco só ocupava o centro da vertente
oriental; mas depois foi subindo; estendeu um braço pelas ruas da Glória, Luz e
São Francisco, outor pelas ruas das Mercês e da Romana, esses
mostraram-se no alto da planura, que hoje se vê toda rodeada de alegres e
pequenas habitações. Conta-se que no ponto mais culminante desta planura
elevava-se outrora, ao tempo do descobrimento do Tijuco, um magnífico e
gigantesco coqueiro, que se avistava de longe balançando sua soberba ramagem no
horizonte. Os índios davam-lhe uma idade fabulosa, e veneravam como uma árvore
sagrada, debaixo de cuja sombra reuniam-se os chefes guerreiros, quando tinham
de tomar alguma deliberação importante. Obrigados a fugir ante os invasores a
sua pátria, a sagrada palmeira caiu no poder destes que a cortaram como objeto
de superstição e idolatria, e no lugar plantaram um cruzeiro que tem sido
renovado até nossos dias. Era com o sagrado símbolo da redenção, que o ávido
português assinalava a suas usurpações. Presentemente a verdade oriental do
morro de Santo Antônio está quase toda coberta de edifícios, á exceção somente
do ponto mais elevado. Impropriamente denominado Gupiara, que pela
escabrosidade e declive rápido e precipitoso do terreno ainda se conserva
inabitado. Essa gupiara foi riquíssima em ouro, com quanto só fosse explorada a
superfície de seu terreno e os cabeços ou bocas dos seus veeiros, que ainda
estão virgens, por se terem profundado e assim dificultando sua
exploração. Em 1740, quando em consequência da representação que os povos
dos distritos dirigiram a El-Rei, se desimpediram algumas lavras auríferas, foi
a da Gupiara concedida a uma sociedade chamada da Lavra da Roda, que a explorou
por muitos anos até 1752; e para lavrar tirou um rego d'água do rio das
Pedras, de extensão de mais de uma légua, que é o que ainda hoje abastece a
cidade.
Em 1755, Antônio Leal da Rosa e Carlos José Pereira requereram licença
para poderem minerar na Gupiara, visto ser lavra desimpedida, e estarem
proibidas as faisqueiras. O fiscal a quem o intendente mandou informar
respondeu que convinha dar-se licença para os peticionários usarem de uma mina
por baixo do chão de que até o presente se não tem usado, afim não só de
tirarem ouro, ,as de fazerem exemplo para os mais que se animassem a fazer
semelhantes serviços. O despacho do intendente foi o seguinte:
“Podem os suplicantes dar as minas que forem precisas, com a declaração que os
negros sejam feitorizados por homens brancos, sob pena de serem confiscados;
ficando outrossim obrigados admitir nas suas minas á força parte dos
faiscadores a que as mesmas derem lugar.” Esta lavra passou depois a ser
propriedade de vários outros concessionários, mas por falta de recursos e
conhecimento do sistema de mineração por meio de minas e galeria
subterrânea, seus veeiros nunca foram explorados. O Dr. José Vieira do
Couto, encarregado pela Rainha D. Maria I de fazer exames mineralógicos na
capitania de Minas em 1796, lastimava com justa razão a ignorância dos
mineiros, e o caminho errado que seguiram no método de mineração, incapazes de
fazer qualquer trabalho importante. O que ele então dizia é aplicável ao nosso
estado atual; porque nossa ignorância, nossos erros infelizmente ainda são os
mesmos, e nenhum passo temos dado no conhecimento da mineralogia e na arte de
minerar. Na Gupiara do morro de Santo Antônio a jazida ou depósito de ouro é
original. Sua superfície compõe-se de um lastro mais ou menos espesso
conforme os lugares, de terras saibrosas, cretáceas e argilosas, de envolta com
fragmentos de mica e quartzos, de forma angular, o ouro tem a mesma forma
angular, com borda aguda, inteiramente diverso do que se encontra nos leitos
dos rios e córregos, e nos terrenos de aluvião, onde as folhetas têm as bordas
quebradas e arredondadas, o que mostra ter sido rolado. Aí ainda se
observam os saldos deixados pelas linhas já exploradas, que constituem as
cabeças ou saídas dos veeiros que profundavam, e ora serpeiam descobertos em
meandros para cima da piçarra, acompanhando os altos e baixos do terreno, ora
desparecem por entre fendas que mostram a separação das rochas estratificadas.
O estado de nudez destas rochas em alguns lugares e as quebradas das terras em
outros indicam o resultado dos estragos lento e sucessivos dos agentes naturais
em épocas, que não será possível determinar.” (Dr. Felício dos Santos – Memória
sobre o Distrito Diamantino do Serro Frio).
O morro
de Santo Antônio, em cuja encosta oriental acha-se edificada a cidade de
Diamantina, desce por esse lado até o pequeno córrego, empaticamente denominado
Rio Grande, apesar de engrossado pelo São Francisco, que vai apanhar os
mananciais que vertem da pitoresca serra fronteira do mesmo nome. O Piruruca o
fraldeja pelos lados dos sul e do ocidente, torcendo-se em engraçados meando
até a distância de um quarto de légua, onde perde o nome, absorvido pelo Rio
Grande. São belos estes dois córregos descendo plácidos com suas águas
cristalinas, que deixam ver o leito de alvíssima areia, estrelado de lindos
seixos transparentes e cristalizados, semelhando o diamante, com seus
montículos de pedras depositadas nas margens pelos mineiros que exploram lhe o
veio, com seus vales adjacentes sempre alcatifados de vivaces flores em todas
as estações do ano, como se só conhecessem a primavera. São bem lindos,
circulando a Diamantina que desvanece, como a donzela enamorada, do rico colar
que cinge-lhe o colo. Ao norte, o morro de Santo Antônio vai ondeando até
perder-se e nivelar-se com os campos do Rio das Pedras. No alto estende-se uma
vasta planura, quase toda ocupada por aprazíveis quintas com soberbos pontos de
vistas para todos os lados. Os índios davam-lhe o nome de Ibytyra,
que quer dizer monte, outeiro sem mais objetivo, como se fora o monte por
excelente. O Ibytyra nesse tempo, antes de ter sido conquistado e demarcado com
a cruz ou com o pelourinho, era coberto de uma imensa mata virgem, espessa
sombria só habitada por animais bravios ou pelo índio feroz antropófago.
Onde hoje vemos magníficos edifícios existia a humilde taba indiana
construída de ramos de palmeiras. Vede as ruas Direita (apesar de ser a mais
tortuosa), do Contrato, do Carmo, do Bonfim por aí descia o índio a matar a
onça, a pantera, a anta, o jaguar, ocultos nos seus covis, ou caçar o jaburu, o
jabuti, e as araras que davam-lhes as lindas plumas de seus cocares; as ruas do
Macau, Chafariz, São Francisco, Cavalhada, descendo da Gupiara até o Rio Grande,
eram um vasto tremedal com o nome de Tijucupaba, que no tempo das águas
alagava-se, tornava-se intransitável e servia como de barreira as feras
acossadas pelo índios, que subiam pelo desfiladeiro apertado onde é hoje o
arraial de Baixo. Nos primeiros anos do século passado,
uma bandeira de aventureiros portugueses, mamelucos e sertanistas filhos de São
Paulo, muitos dos quais talvez saído do arraial da Conceição, que acabavam de
estabelecer, que depois foi Vila do Príncipe e hoje cidade do Serro, apercebidos
de instrumentos de mineração, vieram atravessando serras, matas, rios
caudalosos, e chegando ás bordas do Jequitinhonha, na paragem que hoje tem o
nome de Coronel, deram princípios um pequeno, estabelecimento de mineração; mas
avexados pelas febres endêmicas que aí soem grassar no tempo das chuvas,
provenientes dos detritos vegetais que com as enchentes se depositam e
apodrecem nas lezírias, levantaram tendas, seguiram rio abaixo e chegaram no
córrego da Itatyba, que batizaram por Santa Maria. O nome indígena está
indicando que os aventureiros aí não se podiam demorar, significa pedregal, por
causa dos muitos rochedos que cobrem o solo. A mineração era, pois,
difícil, e quem tinha terrenos ricos e ainda virgens a explorar não perdia tempo
quebrando as pedras. Onde se achavam? Era preciso sabe-lo para não perderem o
rumo. Mas não traziam bússola, não possuíam relógio, não conheciam as estrelas;
e para que? Olhavam para o Itambé que assoberbava-se sobranceiro no horizonte
com seu pico sempre coroado de vapores, como o cone gigantesco de um vulcão
extinto perfurando as nuvens. Era o granito farol dos viajantes; era o centro
de um círculo de sessenta léguas de diâmetro que podiam revolver sem receio de
extraviarem-se. Orientados pela vista do Itambé, deixaram o
Jequitinhonha, que não puderam passar; e, dirigindo-se para o ocidente, subiram
a serra que, como uma imensa aureola, costeia o rio acompanhando suas voltas e
torcicolos. Depois de um dia de jornada penível por terrenos ínvios, fragosos,
quase intransitáveis, costeando serras, evitando pause, volcando rios, chegaram
á confluência do Piruruca e Rio Grande. Por qual dos dois córregos deviam
subir? Não havia razão de preferência. Uns opinavam pela direita, outros pela
esquerda; cumpria-se decidir-se a dúvida. Louvaram-se ao acaso.
Desenrolaram á bandeira, que levantaram ao ar; o vento soprava de
sudoeste; a flamula voltou-se para esquerda; foi interpretado como um sinal da
Providência e os aventureiros seguiram pelo Piruruca acima. Eram
homens ousados e intrépidos esses aventureiros, de vontade constante, pertinaz,
inabalável. Cegos pela ambição do ouro, arrostavam os maiores perigos. Não
temiam o tempo, as estações, a chuva, a seca, o frio, o calor, os animais
ferozes, répteis que davam a morte quase instantânea, insetos que mordiam
produzindo a dor da queimadura, e mais que tudo o indômito e vingativo índio
antropófago que disputava-lhes o terreno palmo a palmo, em guerra renhida e
porfiada, devorando-lhes os prisioneiros. Viajavam por esses desertos,
descuidados e imprevidentes, como se nada devessem recear. Para eles não havia
bosques impenetráveis, serras alcantiladas, rios caudalosos, precipícios,
abismos insondáveis. Se não tinham o que comer, roíam as raízes das árvores,
apanhavam os lagartos, as cobras, os sapos que encontravam no caminho;
servia-lhes tudo o que era capaz de alimentá-los; se não tinham o que beber,
sugavam o sangue dos animais que montavam, mascavam folhas silvestres ou frutas
acres do campo. Já eram homens meio bárbaros, quase desprendidos da sociedade,
faltando a linguagem dos índios, adotando muitos de seus costumes, seguindo
muitas de suas crenças, admirando a sua vida e procurando imitá-los. Muitas
serras, muitos rios, muitos lugares que conhecemos com nomes indígenas, foram
batizados por eles. Tais eram, em geral, os primeiros descobridores das
ricas minas do Brasil. Como dizíamos, guiados pela sorte, seguiram Piruruca
acima. Subiram até quase suas cabeceiras. A noite caía. Levantaram
barracas e ali pernoitaram. No dia seguinte fizeram uma prova. Apanhavam no
leito do córrego um saibro grosso, claro, de envolta com pedras miúdas; é o que
se chama piruruca em linguagem de mineração e que deu o nome ao córrego; a
palavra parece indígena. Os mineiros muitas vezes usam, por semelhança, da
palavra canjica, para designarem o mesmo corpo mineral. Lavaram-no e
encontraram ouro, muito ouro. Então trataram logo de se estabelecer. Exploraram
as margens e conheceram que também eram ricas. Corre a notícia do descoberto.
Chegam outros aventureiros da Conceição e circunvizinhos. O terreno é
vasto e prometia acomodar a todos e por isso não aparecem dissenções e
rivalidades. A população vai-se aumentando, levantam-se alguns colmados ou
ranchos, e o lugar em breve oferece o aspecto de um pequeno arraial. Era
costume de nossos antepassados levantarem logo um pelourinho quando se fixavam
em qualquer parte com intenção de fundarem um arraial. Desgraçadamente os
brasileiros não ignoravam que pelourinho é uma picota que se levanta em um lugar
bem público, com uma argola de ferro presa no alto, onde amarram-se os escravos
para serem surrados com bacalhau. Nas nossas vilas e cidades ainda se vê esse
sinal de barbaria da atualidade. Os nossos aventureiros levantaram o pelourinho
na margem do Piruruca, que logo batizaram por Córrego do Pelourinho,
denominação que conservou-se por muito tempo e se encontra nos papeis antigos
da administração Diamantina. Felizmente, porém, o bom senso do público, ou quer
que seja que ignoramos e nem trataremos de investigar, resistir a essa
inovação, e hoje o córrego é só conhecido pelo seu nome primitivo. (Dr. Felíico
dos Santos - Romance Indígena - Acaiaca).
ouco
tempo depois do estabelecimento desta pequena população uma outra bandeira de
aventureiros, seguindo quase o mesmo roteiro da primeira, chegava ao mesmo
ponto da confluência do Rio Grande e Piruruca. Não havia mais que hesitar: o
lado esquerdo estava ocupado, seguiram pelo direito, Rio Grande cima. Iam
fraldejando o morro que os índios denominavam Ibitira, quando esbarraram ante
um vasto tremedal que não puderam atravessar, por cima do qual serpeava um
pequeno arroio que, nascendo no meio do flanco oriental, ia logo perder-se no
Rio Grande, Tijucupaba chamava-se o tremedal, e Tijuco o pequeno arroio, que
quer dizer lama. Conta-se um formoso galheiro, já de longe
acossado por um caçador da horda aventureira, fora morto atolado ao Tijucapaba;
tirado para fora, encontrara-se alguns folhetas de ouro no barro que enlameava.
Verdadeira ou falsa anedota, o certo é que tinha-se descoberto no Ibitira uma
rica lavra. As terras auríferas estendiam-se desde a raiz do morro
até o alto da Gupiara, depois espraiavam-se pelas margens e leitos do Rio
Grande e São Francisco. Eram tão ricas que se catavam folhetas sem
o trabalho de lavagem.
O Córrego do Tijuco ainda era muito
rico e naturalmente, por que aí corriam as águas nativas e fluviais do flanco
do morro: era como um bolinete formado pela natureza, onde se revolviam
as terras auríferas que, desfeitas, corriam, ficando depositado no fundo o
ouro, como matéria mais pesada. A horda aventureira, com o descoberto da lavra,
fez o seu primeiro estabelecimento na margem direita do Tijuco, no lugar a que
deram o nome de Burgalhau, que ainda hoje, conserva e cuja significação e
etimologia ignoramos. Com a notícia das riquezas do novo descoberto, como
sucedera no Piruruca, chegaram outros mineiros, e a população foi-se aumentando
e derramando pela vertente do morro. Eram pois duas povoações ainda nascentes,
ainda fracas, ainda baldas de recursos e de forças insuficientes para, no meio
de um deserto infectado de inimigos encarniçados, os indígenas, poderem
subsistir separados. Convinha que se reunissem. O Tijuco, embora mais recente,
era mais populoso, oferecia lavras mais ricas, mais vastas, mais duradouras; o
Piruruca alegava a prioridade de seu descoberto e da ereção do pelourinho. Mas
a utilidade prevaleceu sobre a etiqueta o Piruruca cedeu a sua população
passou-se para o Tijuco: o pelourinho foi arrancado; ignoramos em que lugar
fora novamente levantado: - não temos o menor empenho em sabe-lo. Com este
acréscimo de população de indústria, o Tijuco começou a tornar-se importante.
Todo o Burgalhau cobriu-se de colmados. Levantou-se um mais alto, mais bem
construído, mais espaçoso, que destinou-se para capela, escolheu-se Santo
Antônio para padroeiro; consagrou-se-lhe a capela e veio do arraial da
Conceição um sacerdote que ficou servindo de cura. O fisco já de há
muito lançava olhares ávidos sobre o Tijuco: Logo que viu que aí erguera-se uma
capela, procurou um cobrador dos quintos reais; quando viu o sacerdote partir,
mandou o cobrador após, eles chegaram ao mesmo tempo. Assim o Tijuco
constituía-se arraial, tomando o nome do córrego junto do qual fora fundado; o
Ibitira ficou-se chamando morro de Santo Antônio. (Dr. Felício dos
Santos – Romance indígena – Acayaca.)
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