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sexta-feira, 14 de outubro de 2022

REAL EXTRAÇÃO E O ABASTECIMENTO DO DISTRITO DIAMANTINO

 

A Real Extração e o abastecimento do Distrito Diamantino Régis Clemente Quintão Mestrando em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais -UFMG email: regis.quintao@gmail.com Resumo: Este artigo tem como objetivo corroborar as pesquisas relativas ao abastecimento de Minas Gerais no século XVIII a partir da análise da produção e comércio de víveres no Distrito Diamantino na segunda metade da dita centúria. A documentação utilizada, pertencente ao acervo do Arquivo Histórico do Tribunal de Contas de Portugal, possibilitou desvelar parte da dinâmica econômica do Distrito, que está relacionada às tentativas da Real Extração de controlar o abastecimento da região. Palavras-chave: Abastecimento; Demarcação Diamantina; Real Extração. Abstract: This article aims to corroborate the research concerning the supply of Minas Gerais in the eighteenth century from the analysis of production and food trade in the Diamond District in the second half of the century. The used documents belonging to the collection of the Historical Archive of the Court of Portugal, possible unveiling of the economic dynamics of the District, which is related to the attempts of the Real Extraction control the supply of the region. Keywords: Supply; Diamantina Delimitation; Real Extração (Real Extraction). Recebido em: 23/07/2015 – Aceito em 22/10/2015

INTERNET - ACERVO DE ZÉ DA SÉ

 Introdução Hoje não se ignora que tenha havido produção de víveres nas Minas desde a chegada dos primeiros contingentes populacionais. A história é reescrita e a ideia de que as terras mineiras eram inférteis vão dando lugar às interpretações que provam justamente o contrário. Da ênfase à dependência externa, os estudos, aos poucos, passaram a considerar a dinâmica da economia interna. Os trabalhos, sobretudo a partir da década de 1990, desvelaram significativas informações sobre a produção interna, enfatizando a força econômica das Minas nos Setecentos, bem como demonstraram algumas das particularidades das regiões mineiras. É objetivo deste artigo descortinar alguns aspectos da produção e do comércio de alimentos no Distrito Diamantino no período da Real Extração dos Diamantes. O recorte temporal é a segunda metade do século XVIII, mas é mister que observemos as visões da centúria posterior. As percepções de decadência econômica ou de terras inférteis têm bastante relação com os escritos de memorialistas e de viajantes que passaram pelo Brasil nas primeiras décadas do século XIX. A maioria dos viajantes insistia em reproduzir os mesmos discursos relativamente à geografia e ao abastecimento do Distrito Diamantino. Quando se referiu ao Arraial do Tijuco, sede da administração dos diamantes, Mawe registrou que, “[...] por estar em distrito estéril, que nada produz para a alimentação de seus habitantes, em número de seis mil, o Tijuco se abastece em fazendas afastadas várias léguas.” (MAWE, 1978, p. 58). “Fazendas afastadas várias léguas” podem ser centros produtores dentro da própria Demarcação Diamantina ou nos limites da Comarca do Serro do Frio, o que é uma inferência importante. Continuemos. Saint-Hilaire, por sua vez, é mais enfático e até dá números para essas léguas de distância. Sobre o Tijuco, Saint-Hilaire escreveu que “[...] os víveres que aí são consumidos, tanto pelos habitantes da ale-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index 10 deia como pelos negros empregados na pesquisa dos diamantes, vêm de 10, 15, 20 e 24 léguas de distância; principalmente de Rio Vermelho, Penha, Arassuaí etc., e sobretudo Peçanha [...].” (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 30). D’Orbigny não traz novidade que seus colegas viajantes já não tenham dito. O solo continua sendo “[...] tão ingrato e tão árido, que se tem de mandar buscar víveres a quinze ou vinte léguas de distância [...].” (D’ORBIGNY, 1976, p. 135). Era século XIX e os viajantes relatavam a aridez do solo do Distrito Diamantino, sobretudo do Arraial do Tijuco. Até mesmo contemporâneos do século XVIII como José Joaquim da Rocha e José Vieira Couto afirmavam que a “[...] terra é de pouca produção [...]” (ROCHA, 1995, p. 133) e que a Comarca do Serro do Frio tem o “[...] terreno mais agro, fragoso e estéril [...].” (COUTO, 1994, p. 53). Assim, é fácil perceber o motivo da perpetuação daquela visão de improdutividade nas terras diamantinas, posto que as memórias e os relatos dos viajantes eram e são consideradas importantes fontes, mas não bastam para a produção do conhecimento historiográfico. Para afastar de reducionismos, torna-se fundamental o cotejo com fontes manuscritas do período em foco. Nesse sentido, a documentação do Tribunal de Contas de Portugal é de suma importância. Nela há referência de diversas roças na região, a partir das quais os produtores ou roceiros faziam comércio com a Real Extração. Por isso, é certo que o referido órgão se abastecesse no comércio local, como afirmou Furtado (2008)1 . A Administração dos Diamantes, tanto a sediada em Lisboa como no Arraial do Tijuco, era responsável por questões relativas ao abastecimento dos escravos, feitores, boticários e demais empregados nos serviços da extração diamantífera. Nesse sentido, as trocas de cartas entre a diretoria e a administração evidenciam um pouco de como a Real Extração se abastecia no Distrito. Aos 16 de julho de 1776, os diretores gerais em Lisboa escreveram aos administradores dizendo que estavam [...] de acordo na quantia que ficavam devendo diversos roceiros, provenientes das somas que VM.ces adiantaram para segurarem a comodidade dos preços dos mantimentos de que não havia abundância, e se faziam precisos a essa Administração, porém temos de dizer a VM.ces que devem ter particular cuidado em fazer que aqueles devedores encontrem as suas dívidas, como as entregas a que se obrigaram e que quando praticarem semelhantes adiantamentos, seja a roceiros seguros que no tempo competente cumpram as suas obrigações e, de nenhuma sorte, aos que forem remissos e suspeitosos em satisfazê-las. (AHTCP, 1776c2 ). Essa carta deixa claro que a Real Extração comprava mantimentos dos roceiros da região. Além disso, evidencia que a situação não era das melhores, uma vez que não havia mantimentos em abundância. Por isso, foi imprescindível se fazer adiantamento aos roceiros para garantir que os gêneros necessários para o abastecimento da Administração não faltassem. Pouco mais de um ano depois, nos dias 2 e 7 de dezembro de 1777, os diretores voltam a escrever sobre o mesmo assunto: [...] Pelo que pertence aos adiantamentos aos roceiros, por conta dos mantimentos para o sustento da escravatura; recomendamos a VM.ces que os façam com prudência àqueles que tiverem meios de satisfazerem as condições do ajuste que pactuarem e de nenhuma sorte aos de que se duvidar que possam cumprir o mesmo ajuste, se o ano não for abundante dos mesmos manti1 FURTADO. O livro da capa verde: o Regimento Diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da real extração, p. 115. 2 ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (1º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais na Colônia. Livro 4088, p. 179-181, 16-7-1776c. 3 ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (1º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais na Colônia. Livro 4088, p. 216-217, 2-12-1777a. e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index 11 mentos [...]. (AHTCP, 1777a3 ). [...] quanto as outras [dívidas] em que estão diversos roceiros, que somam 2:695$575 réis procedidas de adiantamentos, que VM.ces lhes fizeram nos três anos próximos passados, por conta de mantimentos, nos persuadimos que estarão extintas com entregas de milho que VM.ces deles esperavam receber. (AHTCP, 1777b4 ). Os adiantamentos dados aos roceiros se, por um lado, pareciam garantir o abastecimento da Real Extração, por outro, eram motivo de preocupação. O receio de não receber os mantimentos que já haviam sido pagos fazia com que os diretores gerais estabelecessem regras para tais adiantamentos. Assim, os administradores deviam prestar atenção nos tipos de roceiros com os quais faziam negócio, devendo sempre observar se aqueles eram realmente capazes de cumprir com o acordo, isto é, entregando os mantimentos quando estes fossem necessários. Outro motivo de preocupação da Diretoria Geral era o preço dos mantimentos comprados na Demarcação Diamantina. Assim, em 12 de dezembro de 1777, os diretores respondem à carta dos administradores relatando que estimavam muito que [...] as roças estivessem escapas (sic), do que precisamente se havia de seguir grande abundância de mantimentos neste ano e pelo baixo preço que deviam ter, nos persuadimos que estará recuperado o excesso daquele por que se compraram nos dois últimos anos para essa Administração. (AHTCP, 1777d5 ). Como se pode notar, havia certa inconstância tanto na produção de mantimentos quanto nos preços. O medo de crises alimentares estava presente. Todavia, ao mesmo tempo, fala-se em abundância de víveres. Os preços dos alimentos ora estavam altos ora baixos, como atestam as cartas, embora se possa dizer que fosse mais comum os altos preços. D’Orbigny afirmou que, no Distrito, “[...] os artigos de primeira necessidade são muito mais caros que os de qualquer outra cidade do interior [...]” e que, ali, a mandioca, o milho e o arroz eram vendidos a “[...] preços exorbitantes.” (D’ORBIGNY, 1976, p.135). Assim, reforça-se a continuidade do caráter especulativo do comércio de gêneros alimentícios na Colônia, o qual, segundo Zemella (1990) 6 , foi bastante comum na primeira metade do século XVIII. Em 4 de agosto de 1780, tais questões parecem não terem sido resolvidas. Quem escreveu foi o presidente do Erário Régio e a carta não é dirigida aos administradores, mas ao superior deles, o intendente João da Rocha Dantas e Mendonça: [...] Pelo que pertence terem suspendido os roceiros a venda do milho pelo preço de 225 réis e haver-se ordenado aos paioleiros dessa Administração que o recebessem pelo de 300 réis, por não prometer abundante colheita a falta de cultura dos roçados: obrou-se o que se devia em comprar por este preço o milho necessário para o provimento dos paióis da mesma Administração, antes que a precisão a pusesse na necessidade de oferecer maior preço pelo dito gênero, o que se deverá sempre precaver, especialmente no tempo das colheitas dos frutos, em que é maior a abundância deles e a comodidade dos preços para se fazer as provisões, como tenho ordenado a VM.ce. (AHTCP, 1780b7 ) . Em razão dos inconstantes preços, diziam as recomendações contidas na carta, 4 ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (1º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais na Colônia. Livro 4088, p. 219-220, 7-12-1777b. 5 ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (1º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais na Colônia. Livro 4088, p. 223-224, 12-12-1777d. 6 ZEMELLA. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII, p. 195. 7 ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (2º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais, na Colônia. Livro 4089, p. 44-47, 4-8-1780b. e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index 12 deviam-se comprar os alimentos no período em que se encontravam em abundância visto que, assim, estariam com preços mais acessíveis. Além disso, os mantimentos deviam ser comprados antes da sua efetiva falta, devendo ser estocados para evitar maiores dificuldades, como parece ter ocorrido com o milho que, em 1780, aumentou em 75 réis em função de uma possível má colheita. É certo que as questões relativas ao abastecimento do Distrito foram de grande interesse por parte das autoridades diamantinas. Entre as atribuições da Real Extração, além de garantir a subsistência dos empregados nos trabalhos de mineração, havia a necessidade de organizar a atividade comercial, sobretudo dos roceiros que vendiam seus frutos no Arraial do Tijuco. Em 19 de dezembro de 1780, o presidente do Erário Régio, em carta ao desembargador intendente José Antônio de Meireles Freire, relata: [...] Pelo que pertence a casa nesse Arraial do Tijuco, para a qual transportam os roceiros os seus frutos para os venderem: suposta a informação de VM.ces de ser impossível aos mesmos roceiros ter cada um ou muitos uma casa para os exporem à venda, tanto pela falta delas, como por que ficariam mais caros os ditos frutos, se deve considerar de utilidade comum a referida casa, não obstante arrematar-se cada triênio o seu rendimento por maior quantia do que elas valem. E enquanto ao arrendatário da mesma casa comprar dos roceiros os mantimentos que não vendem logo, para revendê-los, como ele nestas compras não faz monopólio porque compra o que está exposto à venda e não acha comprador, deve Vm.ce averiguar se o mesmo arrendatário é dos mercadores que permite-se nesse arraial o §33 do Regimento [Diamantino] com assistência do des.or intendente, e fazer pôr logo em prática o que nela se assentar que é mais conveniente, dando-me conta do que assim se entendeu, para o aprovar se o merecer. (AHTCP, 1780c8 ) . Como se pode notar na carta, além de ficar evidente a existência de um comércio de frutos, o que aponta para a existência de roças no Arraial do Tijuco ou nas suas adjacências, é possível aferir que tal atividade fosse expressiva, pois, ao que parece, havia grande quantidade de roceiros que competiam na venda de mantimentos no referido arraial, tanto é que não havia casas de comércio para que todos pudessem realizar suas vendas. A esse respeito, a recomendação dada pelo presidente do Erário Régio é para que se observasse a idoneidade dos arrendatários das casas, de acordo com as disposições do Regimento Diamantino. Outro fator que demonstra aspectos da produção de alimentos na Demarcação Diamantina é o estabelecimento de roças junto aos serviços de mineração. Talvez diante dos problemas relativos aos roceiros e ao preço dos mantimentos por eles vendidos, a Real Extração bem que tentou estabelecer lavouras para facilitar o seu abastecimento. Assim, em 1780, os administradores gerais decidiram cultivar alimentos nas proximidades do serviço da Serra de Santo Antônio do Itacambiruçú9 , local que, segundo eles, apresentava comodidade para tal fim. A justificativa para o estabelecimento da roça é em razão de a dita serra ficar muito longe10 do Arraial do Tijuco, de onde eram carregados os gêneros alimentícios para consumo dos empregados no serviço de extração, o que fazia com que a condução de mantimentos se tornasse mais cara e árdua. Ao serem avisados sobre a pretendida plantação, os diretores gerais advertiram que se devesse ter muita cautela sobre o assunto, pois os escravos que se empregariam na cultura de alimentos podiam facilmente desviarem-se do trabalho principal de mineração. Cogitavam ainda que o plantio aumentasse as despesas da Real Extração, fazendo com que o gasto pudesse ser até maior 8 ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (2º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais, na Colônia. Livro 4089, p. 66-69, 19-12- 1780c. 9 Grosso modo, pode-se dizer que a serra de Santo Antônio do Itacambiruçú integrava a Demarcação Diamantina, mas, para Ivana Parrela, a serra “[...] teve a condição de destacamento, pequenos distritos diamantinos distintos da Demarcação Diamantina, mas submetidos à Intendência e à Real Extração.” (PARRELA, 2009, p. 38). 10Ao norte da Demarcação, a serra de Santo Antônio do Itacambiruçú estava a 47 léguas do Arraial do Tijuco (PARRELA, 2009). e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index 13 do que se os mantimentos fossem comprados no Tijuco e conduzidos até a serra. Por isso, os diretores reprovaram a ideia dos administradores, explicando que Por estes e outros inconvenientes que entendemos são presentes a VM.ces, temos por mais útil e acertado que VM.ces, nas ocasiões que se precisarem de mantimentos no referido Itacambiruçú, os façam comprar nas roças que lhe forem mais próximas, e ajustar com os roceiros, com a condição de os entregarem nos paióis daquele serviço, como é costume, e se executam as compras para os serviços que, como o sobredito, estão em longa distância desse Arraial [do Tijuco]. (AHTCP, 1780a11) . Mesmo tendo a ideia rebatida pelos diretores, os administradores insistiram no cultivo de alimentos. Tendo recorrido à Junta da Administração, eles conseguiram certidões que aprovaram a viabilidade para o estabelecimento da roça, ficando de comum acordo quanto à utilidade para a Real Extração. Assim, em 31 de janeiro de 1783, os diretores voltam a escrever dizendo que estavam conformados com a decisão, pois tudo indicava que não havia outro meio de abastecer o serviço da serra de Santo Antônio. Dessa forma, eles autorizavam a lavoura pretendida desde que [...] nela não se introduza relaxação e tire a Real Extração o interesse que se lhe propõem, e que no amanho da mesma roça empreguem dos escravos próprios da Administração, os que pela maior idade e outros defeitos não servirem para os trabalhos da mineração, e para nos ser constante a utilidade que der este estabelecimento, ordenarão VM.ces que se faça conta distinta de toda despesa que nele se fizer, e de tudo o que for seu rendimento. (AHTCP, 1783a12). As recomendações dos diretores parecem não terem surtido muito efeito. A roça foi estabelecida, mas os administradores pouco se preocuparam em darem satisfação sobre a situação da lavoura. Por isso, em 3 de setembro de 1784, os diretores reclamavam o descuido dos administradores dizendo que não bastava que eles fizessem conta do gastos e rendimentos com o cultivo, mas também era necessário que enviassem a conta “[...] na qual devem vir calculados todos os frutos, que constituíram aquele rendimento pelos preços médios por que ali correram no respectivo tempo da colheita, para sabermos a utilidade, que resultou à Real Fazenda desse estabelecimento.” (AHTCP, 178413). A partir do envio das contas de despesa com a roça, os problemas relativos à conveniência das plantações começaram a aparecer. Cerca de um ano depois, em 27 de setembro de 1785, os diretores gerais questionaram a serventia da produção, pois a despesa havia excedido o valor estabelecido. Além disso, não ficaram satisfeitos com a colheita, que só contou com dois gêneros, a saber, 700 alqueires de milho e 21 de feijão (AHTCP, 178514). Não é difícil entender o motivo da insatisfação, pois a alimentação dos empregados da Real Extração, como mencionado, não contava apenas com milho e feijão. Dessa forma, não era vantajoso cultivá-los, já que os demais gêneros teriam que ser comprados e conduzidos até a serra. Valendo-se do Livro de Razão e Balanço Geral da Administração da Real Extração de Ouro, Diamantes: século XVIII/XIX, existente no Museu do Ouro de Sabará, Parrela 11ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (2º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais, na Colônia. Livro 4089, p. 25-26, 12-7-1780a. 12ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (2º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais, na Colônia. Livro 4089, p. 198-200, 31-1- 1783a. 13ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (2º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais, na Colônia. Livro 4089, p. 268-270, 3-9-1784. 14ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (2º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais, na Colônia. Livro 4089, p. 289-290, 27-9- 1785. 15PARRELA. O teatro das desordens: garimpo, contrabando e violência no sertão diamantino: 1768-1800, p. 98. e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index 14 (2009)15 afirmou que a produção do ano de 1784, na Serra de Santo Antônio, foi maior do que a do ano anterior, totalizando 779 alqueires de milho e 134 de feijão. Além disso, a partir de 1786, as despesas com a plantação de roças passaram a ser custeadas pela própria lavra da serra, o que não impediu que os dirigentes da Real Extração preferissem interromper a cultura de gêneros naquela região em função da pouca diversidade de produção e das altas despesas. Assim, a 1º de agosto de 1786, a Diretoria Geral da Real Extração decide encerrar a cultura de alimentos. Segundo os diretores, a plantação não tinha utilidade alguma à Real Fazenda, pois as despesas constantemente excediam o valor estabelecido. Além disso, o seu rendimento era bastante diminuto. Portanto, os diretores ordenaram que, levando em consideração a informação dada pelos próprios administradores de que nos arredores da Serra de Santo Antônio havia muitas outras roças, das quais se podiam comprar os mantimentos necessários para os empregados naquele serviço, “[...] não o continuem por mais tempo, e que empreguem os feitos, e os negros que ali ocupavam aonde possa ser útil o seu trabalho, no caso de se fazerem precisos.” (AHTCP, 178616). A produção de víveres na Serra de Santo Antônio do Itacambiruçú durou cerca de três anos. Como ficou claro, as razões para o seu fim têm muito mais relação com as altas despesas e, em parte, pelo pouco rendimento. Em todo caso, a narrativa acerca do estabelecimento dessa roça traz importantes questões para o tema do abastecimento do Distrito Diamantino. O seu estabelecimento vai à contramão do que os viajantes e memorialistas disseram sobre a Demarcação. O solo da região realmente podia ser, em algumas partes, árido e infértil. Mas isso não pode ser aplicado a toda Demarcação, haja vista que o cultivo deu-se ao lado de um serviço de extração diamantífera. Nesse sentido, cabe aqui citar Carlos Magno Guimarães e Liana Maria Reis (1987). Esses autores, ao estudarem a importância da agricultura na sociedade mineira do século XVIII, demonstraram que a agricultura, além de ter sido condição básica na estrutura colonial, foi concomitante à atividade mineradora. Ainda que seja outro o contexto em que foi estabelecida a roça da Serra da de Santo Antônio, o objetivo parecia o mesmo que o apontado por Guimarães e Reis (1987, p. 23): “[...] o sustento de senhores e escravos, para que estes pudessem ser utilizados na atividade nuclear: a mineração”. A agricultura na Serra de Santo Antônio mostra que é possível o estabelecimento de lavoura ao lado de serviço diamantífero, região que poderia ser infértil por excelência. Nesse sentido, é interessante observar que as formulações de Guimarães e Reis são de grande valia. Para eles, “não há homogeneidade na formação do terreno da área das Minas” (GUIMARÃES E REIS, 1987, p. 15). Outro ponto a considerar sobre a inter-relação entre a agricultura e a atividade mineradora diz respeito às formulações de Marcos Lobato Martins que, ao avaliar o peso que a agricultura adquiriu no nordeste mineiro, tanto na Comarca do Serro do Frio como dentro e fora do Distrito Diamantino, chegou à conclusão de que havia “[...] separação mais ou menos nítida entre unidades agropastoris e unidades mineradoras na área da Demarcação Diamantina, pelo menos no período que corresponde à fase de maior sucesso da Real Extração” (MARTINS, 1999, p. 55). É preciso lembrar que entre as fontes analisadas por Martins estão os relatos de viajantes e inventários de moradores do Arraial do Tijuco e vizinhanças. Quanto aos viajantes, já se sabe das contradições. No que se refere aos inventários, a maioria são de proprietários rurais do Tijuco e neles observou-se que não havia referências à posse de instrumentos de mineração ou lavras de ouro, o que apontaria para a referida separação entre as atividades agropastoris e mineradoras. No entanto, o próprio autor reconhece que “[...] é preciso aprofundar as pesquisas para avançar no tratamento desta temática.” (MARTINS, 1999, 16 ARQUIVO HISTÓRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Erário Régio. Livro (2º) do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direção Geral da Real Extração dos Diamantes, em Lisboa, para seus administradores gerais, na Colônia. Livro 4089, p. 312-313, 1-8-1786. e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index 15 p. 55). Seja como for, o historiador traz contribuições relevantes ao tema do abastecimento na região dos diamantes. Para ele, é forçoso reconhecer que boa parte do aprovisionamento da população da Comarca do Serro do Frio e, também, do Distrito Diamantino “[...] era garantida pela produção agropecuária da própria região.” (MARTINS, 1999, p. 56-57). A Real Extração tentou controlar e regulamentar o comércio e a produção, mas nem sempre com sucesso, muito disso em função do descumprimento das ordens por parte das autoridades e dos órgãos sediados no Arraial do Tijuco. No entanto, a Administração Diamantina foi o motor para o desenvolvimento do Distrito, tendo em vista que se incumbia de muitas questões relativas ao abastecimento da região. Não se pode dizer que ela foi a única responsável por garantir a sobrevivência daquela população, mas pode-se afirmar que as suas ingerências foram essenciais para que não se prejudicassem o abastecimento da população, sobretudo aquela empregada nos serviços diamantíferos. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Ricos e pobres em Minas Colonial: produção e hierarquização social no mundo colonial, 1750- 1822. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999. CHAVES, Cláudia Maria das Graças. As “produções nacionais”: o mercado luso-brasileiro através dos mapas de importação e exportação. In: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro (Org.). Nomes e números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: UFJF, 2006. p. 135-151. CHAVES, Cláudia Maria das Graças. 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