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sexta-feira, 14 de outubro de 2022

CAPITÃO JOÃO JULIO COSTA

 

CAPITÃO JOÃO JÚLIO COSTA, DO 3º BPMMG.

                                                                  Carlos Alexandre Costa Leite

 

Hoje, em 19 de junho de 2020, organizando alguns arquivos pela manhã, encontrei algumas memórias do meu avô materno, João Júlio Costa, comumente conhecido como Capitão João Costa, que deixou suas pegadas em Diamantina-MG e em muito do Estado de Minas Gerais.

Compartilharei, como já fiz, algumas histórias e pegadas, de maneira pessoal.

Lembro-me da minha mãe e tia que eu chamava de avó, de nome Áurea da Conceição Costa, dizendo que ele foi comandante em “destacamentos” em cinquenta e duas cidades mineiras. Comumente chamado quando havia pistolagem e alarde sobre “cangaceiros” vindos do Nordeste que, comumente eram somente pistoleiros, mas que não necessariamente tinham passado pelo cangaço, ia de pronto em meio a homens valorosos, como comandado e logo como comandante, em muitas missões. Como o ouvi dizer certa vez, em voz de lamento: “Ah, bravos caçadores casacas pardas... tenho saudades...”.

Essa imagem do cangaceiro, segundo alguns relatos que eu ouvia e, por vezes ainda ouço algo sobre, vinha da tentativa de intimidação das pessoas locais, principalmente de pequenas cidades, pelo fato do homem estranho dizer estar vindo de alguma parte do Nordeste do nosso país, onde o temor pelo cangaço era enorme e, alguns destes homens, diziam ter estado até mesmo com Lampião. Temor que não afetava a PMMG, principalmente quando meu avô, dentre outros bravos de grande valor, estava à frente dos grupamentos compostos pelos caçadores casacas pardas do 3º BPMMG. Grupamentos compostos por pessoas locais, descendentes de escravos e índios, muitos mestiços e parentes e aparentados uns dos outros, dentre os demais, conhecedores de toda a Região, do seu ecossistema e capazes de sobreviver, caçar e emboscar qualquer “metido a esperto”, vindo de outras paragens, que vinha tentar levar riquezas e vidas inescrupulosamente, era (e ainda é) inadmissível tal coisa por estas bandas de cá. A Região era e ainda é, grande centro de riquezas minerais, dentre elas, as mais visadas: ouro e diamante. Naquele tempo do Capitão João Costa e outros grandes e valorosos caçadores casacas pardas, o entrar de pistoleiros até poderia acontecer, mas o sair, era algo impossível para qualquer espertalhão, fosse de onde fosse.

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Em meio a tantas histórias, lembro que o meu avô dizia que alguns matadores tinham orações que faziam com que virassem cupinzeiros e troncos de árvores. Crenças bem comuns na época, e que até hoje existem em alguns lugares e com algumas pessoas que conheço, que mantêm essa crença. Dizia meu avô que com ele isso não acontecia, pois Nossa Senhora do Rosário dos Pretos estava com ele e com os outros irmãos de armas, muitos também devotos dela, pois diziam que ela os tirou da escravidão, pois eram ascendentes próximos, até mesmo de primeiro grau, de escravos da Região, e que, por isso, não desperdiçavam “balas”, quando ousavam enfrentar os caçadores “Do 3º”, pois Nossa Senhora do Rosário dava a visão certa para eles não morrerem por tiro de inimigo algum. Uma mistura de fé e crendices, sendo algo bastante comum naquela época e, principalmente de perícia militar, já não tão comum naqueles dias que policiais não eram valorizados verdadeiramente, fazendo o 3º BPMMG ser altamente diferenciado entre poucos outros batalhões, com reconhecimento de grande valor institucional e humano, estando o Capitão João Costa em meio aos renomados e valorosos da época.

Em meio ao seu intenso e ostensivo trabalho operacional, encontrou tempo para muitas outras atividades. Dentre elas, como ele mesmo dizia: “os dois Joãos”, fundaram e prosseguiram com a primeira banda de música do Estado de Minas gerais. O João Júlio Costa, meu avô, deu prosseguimento à formação da mais tradicional banda de música das polícias militares de todos os Estados desta Federação. Lembro-me dos contos familiares sobre ele, meu avô, que quando partia para as missões operacionais, sempre buscava em meio a tanta pobreza, principalmente no Vale do Jequitinhonha, talentos musicais que, ele mesmo, fazia questão de incentivar ao “ingresso nas fileiras do terceiro batalhão de caçadores de Minas gerais, dos famosos casacas pardas”. Meu avô também saia, em seus poucos momentos de descanso, para as cidades da Região, em busca de talentos musicais e de pessoas que necessitassem de algum tipo de ajuda, com gastos próprios, na maioria dos casos. Isso, em um tempo que o traslado era extremamente complicado, sem asfalto, com viagens de horas ou dias, inclusive no lombo de um cavalo.

Falando em cavalo, como oficial, tinha ao seu dispor um belo cavalo branco (dentre outros) que, infelizmente, não conheci pessoalmente, mas que muito era falado, que era um xodó que ele, meu avô, tinha. Lembro-me que diziam que o militar de intendência, levava o cavalo para o quartel para cuidar, inclusive dar banho e, quando ia entregar ao meu avô, todos admiravam o tamanho e beleza do animal. “Os intendências” também o auxiliavam, junto com a minha avó, em uma horta que existia na nossa casa, para o uso da família e divisão com os mais necessitados. Todos os praças que ficavam à disposição do meu avô para auxílios pessoais, que era direito dos oficiais na época, gostavam muito dele, segundo relatos. Conheci um que foi visitar o meu avô certa vez, ambos em idades avançadas, mas que sorriam alto contando casos na sala.

Minas Gerais é o Estado que formou a primeira de todas as polícias militares e, o meu avô, João Júlio Costa, está registrado no 3º BPMMG de caçadores, como um dos primeiros “casacas pardas”, tal como passaram a ser chamados em episódio específico, dentre tantos que fazem a tradição do 3º BPMMG, tradição que em grande parte foi construída pelo meu avô. Falha-me a memória, mas creio ser o meu avô, o militar de número 136/7 nos registros da referida instituição. Altaneiro como o Pico do Itambé, como ele mesmo dizia, o 3º BPMMG era a sua segunda família e, devido a ter sido homem de origem humilde, decidiu formular, com amigos e amigas, militares e civis, políticas sociais em uma época que ainda reinava olhares discriminatórios e se ouvia o estalar do chicote escravista, comumente em línguas ferinas, em uma história construída pela escravidão do garimpo.

Lembro-me de um acontecimento, quando na janela da cozinha de nossa casa, que ao olhar a direita, víamos toda a magnitude do Pico do Itambé, meu avô sentado e olhando para o Pico disse: “já fui daquele tamanho, quando estava na ativa”. Hoje, me emociono quando me lembro de tal fato, pois somente depois de mais velho, consegui compreender a magnitude desta frase aparentemente simples.

O 3º BPMMG, por ser a segunda casa de meu avô, foi frequentado por toda a sua prole e, consequentemente, muitos netos e netas. Lembro-me de muito ir ao 3º BPMMG quando criança, junto de minha mãe e/ou alguma tia, para resolver questões referentes ao meu avô e até mesmo visitas cordiais. Por lá almocei no rancho por algumas vezes e me lembro que sempre repetia a pratada. Nesta época, o rancho ficava no prédio à direita de quem entra no pátio interior da sede de comando atual. Lembro-me de um cozinheiro, que era um homem negro azulão, como chamávamos aqui, de corpo forte, sorriso largo e grande gentileza. E brincava comigo quando eu ia colocar o prato para ele servir: “assim vai ficar do meu tamanho”! E era o que eu queria, pois era um camarada troncudo, daqueles que com um tapa derruba três.

Meu avô, dentre as suas ações sociais, chamadas de caridade na época, em companhia de amigos e amigas, oferecia alimentos, roupas, moradia e educação aos mais necessitados, no Centro da Cidade de Diamantina, depois indo para outros pontos da referida cidade. Ação que causou admiração por parte de algumas pessoas, inclusive o auxiliando e, desgosto por parte de outras, que diziam que ele estava aproximando pessoas perigosas, por serem de classes menos abastadas, às pessoas pertencentes à parte de uma elite escravista, que não admitia a presença de negros, índios e mestiços próximos ao seu meio de convívio e morada. Mesmo assim, tudo fluiu muito bem, pois Capitão João Costa não era de arrego e nem de se incomodar com ameaças veladas.

Até à atualidade, por dívida histórica (rsrsrsrsrs...), ainda existem algumas pessoas locais que olham torto para os descendentes deste valoroso Capitão, onde fui incluído em alguns casos. “Há pessoas erradas e há pessoa certas em todas famílias, mas os certos, não devem aceitar ser comparados com os errados, mas sim, com os certos, mesmo que os certos não sejam amados pelas pessoas” (um senhor, descendente de escravos, me disse isso uma vez, na minha infância, na Chácara de Chica da Silva, e guardo até hoje). Não é um problema que tenho mais, mas na minha infância e juventude ouvi coisas do tipo de algumas destas pessoas que discriminavam o meu avô: “ah... família Costa, de João Costa....”, e me davam as costas. Lembro-me que quando criança, jogando bola na rua, a minha bola, daquelas dente-de-leite, literalmente, encostou no pé de uma pessoa e ela disse, com olhar demoníaco e voz de ira: “tinha que ser neto daquele João Costa...”. Ao contar o fato à minha mãe, na época, ela saiu e foi em busca dessa pessoa e a prometeu um processo ou algo pior, tipo uma surra por ameaçar o filho dela (hehehe...), caso ousasse falar mal do pai dela, principalmente com o filho dela que não tinha nada a ver com a situação.

Minha mãe sofreu retaliação de maneira mais direta, por dívida histórica, quando terminou o seu curso de Direito na PUCMG, instituição que também estudei, dentre outras. Quando ela voltou para Diamantina, não querendo advogar (acho que está no meu genoma não querer também...rsrsrsrsrsrs...), abriu uma lanchonete que teve que ser vendida por complô dos que odiavam o meu avô, mesmo ele já estando reformado e de idade mais avançada, pois proibiram seus subordinados e parentes de entrarem no referido lugar, que foi vendido e até a atualidade possui uma lanchonete, na Rua do Bonfim, no Centro de Diamantina. Um muito amigo de minha mãe, ao pisar na calçada de tal lanchonete, foi avisado aos berros pelo irmão mais velho: “ Fulano! Você sabe que todos já combinaram não entrar aí, até que essa família toda suma de Diamantina”. Sim, herança histórica de um homem que auxiliou os mais necessitados e que é historicamente conhecido e reconhecido por fazer parte do dueto que fundou e prosseguiu com a mais tradicional banda de música policial militar do Brasil e, dentre feitos militares e de cumprimento do dever, fosse rico ou pobre, estando fora da lei o acompanhava, no carinho ou no “reboque”, pois me lembro que ele contava que não havia algemas e, quando chegaram, eram poucas. Por isso, quando alguém resistia, tinha que ser dominado e levado “no braço” até a delegacia. Em alguns casos, amarravam com corda.

Como o meu avô era homem de não “abaixar a cabeça” para pessoa alguma, mesmo respeitando todas as pessoas, principalmente as mais humildes, que aqui se resumiam em mais de noventa por cento de pessoas negras, os mais poderosos não ousavam ofendê-lo de frente, até mesmo pelo fato de seus irmãos de armas serem grandes auxiliadores de suas obras sociais, por também serem de origem humilde. Felizmente “puxar saco e abaixar a cabeça” não são características de seus descendentes, em toda linha sucessória e, por isso, falo diretamente sem me importar com agrados ou desagrados de qualquer pessoa que seja. A história deve ser reta!

Com o tempo aprendi com o meu avô uma coisa, nas suas histórias: “abaixar cabeça para gente mesquinha, é se tornar pior que elas, pois capacho de gente mesquinha faz coisas piores que elas. Se não fizerem nada com você, deixe, mas se fizerem, revide”. Meu avô, mesmo odiado por algumas pessoas, era extremamente amado por outras em número muito maior. Esta é comumente a parte falada, para preservar os mesquinhos que não gostavam dele. Mesmo não gostando dele, não o afrontavam, pois sabiam que teria volta. Afinal, o pensar é livre, mas o agir nos cobra revides. Aprendi com meus avôs a não “bulir” com ninguém, mas não me sujeitar, de igual forma, a ninguém. A exemplo do meu outro avô, Alexandre Benício Leite, que por seu valor moral e político ganhou eleição para prefeito em outro Estado, foi assassinado por cinco pistoleiros a mando de três irmãos. Assassinato que aconteceu em uma sexta-feira e que na terça-feira da semana seguinte o cemitério tinha mais cinco pistoleiros e três mandantes, conduzidos por um tio que não conheci, tal como não conheci este avô, mas apenas a sua história. Também foi caridoso e por isso, em uma época de dominação, extremamente criticado por isso. Cada tempo tem à sua maneira de se resolver as coisas...

Dentre as tantas ações do meu avô João Costa, entrego uma delas à referência pós-mencionada, o dever da história contada corretamente:

“A Sociedade Beneficente S. Francisco, tendo à frente o Capitão João Júlio Costa, idealizou a Construção de um Asilo nesta Cidade, com a finalidade de recolher as menores que vivem na zona boemia, na mais triste promiscuidade, afastando-as daquele meio pernicioso e proporcionando-lhes sadia educação. E não ficou só na conversa. O trabalho foi iniciado com entusiasmo, foi adquirido o terreno e a construção do prédio atacada. Mas como sempre acontece com Iniciativas particulares, nem todos compreenderam o alcance da instituição e poucos foram os que contribuíram com os seus donativos. Dos poderes públicos uma migalha foi recebida. E lá está no Bairro da Consolação, a obra iniciada, parada, á espera das minguadas contribuições recebidas daqui e dali. Muita generosidade se espera do povo de Diamantina neste novo ano de 1959 para continuar e dar novo impulso à construção do Asilo Imaculada”. Asilo Imaculada (VOZ DE DIAMANTINA, ano 53, n. 15, 11 janeiro 1959).

Em sua idade avançada, sentado em sua cama, com mãos e pernas atrofiadas pela artrite reumatoide e artrose, herança genética que me deixou, com fala carregada de “Rs” e “Ls”, relembrava as suas histórias, enquanto eu, ainda criança, ficava sentado na porta do quarto dele, enquanto ele, cego e com enorme dificuldade de movimentos, falava sozinho comumente, ou com alguma pessoa ia visita-lo.

Homem devoto, sempre estava com um rosário em mãos. Pedia para que fossem colocados os seus discos de bandas marciais, para que tentasse ouvir algo, pois a surdez, junto à cegueira e dificuldade de movimentos, tomavam conta de um espírito aguerrido, que foi e sempre será um dos tantos valorosos pilares do 3º BPMMG. Eu ouvia junto a ele as músicas de bandas marciais que até hoje tenho prazer em ouvir. Via-o tentando tocar sua clarineta acompanhando os seus discos de vinil. No entanto, com dedos atrofiados, não conseguia tirar notas. Abaixava a cabeça e dizia tristemente: “dureza medonha... difícillllll”... com o “L” carregado no final.

Por presenciar tal tristeza, me lembro de ter chorado com o coração infantil de uma criança de aproximados cinco, seis, sete... anos, por algumas vezes. Eu tocava em suas mãos, o tomava a bênção e segurava em seu rosário e dizia, do fundo de minha alma infantil: “Nossa Senhora do Rosário, faz meu vô ficar bom de novo”. Por uma vez, pelo menos, me lembro que ele disse algo do tipo: “a vida é assim mesmo, meu filho. Deus te abençoe. Todo mundo tem a sua hora”. Isso quando já estava cego e surdo, mas mesmo assim, ouvia algumas coisas que eu dizia de coração. Mais triste foi quando começou a perder a sua lucidez, depois de uma queda da sua própria cama, quando bateu a cabeça. Mesmo tendo sido internado e nada grave foi constatado, me lembro que se tornou cada vez mais amuado. Absolutamente compreensível, pois um espírito aguerrido que, conquistando e combatendo, auxiliando e defendendo os mais humildes, mesmo contra todo um grupo de canalhas, repentinamente se vê precisando do auxílio de suas filhas para tarefas simples e constrangedoras, como tomar banho e ir ao banheiro. Tais tarefas quase que totalmente eram da minha tia Maria Stela Costa, que eu chamava de Teté, uma mãe que tive, pois a minha, Izabel da Conceição Costa, faleceu quando eu tinha dezoito anos, quando eu estava no serviço militar obrigatório, e muito antes disso, se apresentou muito doente e com saúde instável, perdendo, por algumas vezes, a memória e não me reconhecendo, como tendo convulsões desde quando eu tinha onze anos. A causa da morte, nunca foi descoberta.

Meu avô, comumente chamado apenas de Capitão ou Seu Capitão por muitas pessoas, de capitão malvado não tinha nada com os que andavam na linha. No entanto, foi homem de ser amado e odiado pelas pessoas, pela sua personalidade forte e pelo seu senso de respeito e caridade, coisa não tão comum em sua época, pelos idos de 1920 em diante, quando tomou frente na reformulação e prosseguimento da mais tradicional banda de polícia militar do país. Não é exaltação, é um fato histórico!

O Capitão João Júlio Costa era amado e odiado por ser caridoso, como chamadas as pessoas da sua época que trabalhavam em prol de pessoas menos favorecidas. Por isso, por algumas pessoas preconceituosas, ainda embebidas do fétido caldo de sangue e crueldade da escravidão, altamente latente em suas almas, que acabava por escapar em argumentos sórdidos de defesa de uma sociedade que não existia, foi tratado como equivocado por muitas pessoas, por auxiliar os mais necessitados de maneira pessoal e igualitária, sem aquele comportamento social hipócrita de demonstrar estar auxiliando alguém, para cair nas graças da sociedade. Mesmo assim, continuou sendo um militar de garbo e espírito. Não usava farda para simplesmente ter uma profissão, mas por se sentir parte dela, como símbolo de uma instituição que ainda luta para manter valores que estão se perdendo por alguns compreenderem que são valores retrógrados. Tudo tem a sua evolução e, por isso, adaptação, mas não negação do que é valoroso. Esquecimento de pessoas e fatos de valor, principalmente, é inadmissível. Felizmente, o 3º BPMMG sempre exalta os seus (espero que se mantenha assim), pois percebo isso na minha surdina, quando sempre vejo algo se referindo positivamente ao meu avô e aos seus tantos valorosos. Por ser rígido no seu dever, foi odiado por muitos, por conduzir, por bem ou por mal, baderneiros e criadores de conflitos eventuais que se julgavam intocáveis, não só em Diamantina, mas nas cinquenta e duas cidades que comandou, segundo dizia minha mãe. Por não se vender ao elitismo de uma Minas Gerais que ainda desejava uma escravidão do ouro e diamante, disfarçada em princípios aleatórios, dizia que “pau que dá em Chico dá em Francisco”, como eu mesmo ouvi e, por isso, cumpria o seu dever, fosse com quem fosse.

Quando uma pessoa cumpre o seu dever, comumente as suas ações são pagas com desprezo e punições, em meio a uma sociedade hipócrita e altamente escravagista em espírito, em quantidade considerável. Quantidade que mesmo parecendo ser menor, detinha (e detém escamoteadamente) poder para manipular muitas pessoas, principalmente as mais humildes.

Capitão João Júlio Costa, em verdade, Major João Júlio Costa, recebeu promoção por bravura, pela revolução de 1932. Ao se reformar, entrando para a reserva, não recebeu seu posto imediato de major. Sim, a sua promoção por bravura deveria ser para tenente coronel. Não foi a coronel por ter criado inimigos na instituição PMMG da época, por nunca ter “passado mão na cabeça de quem deveria tirar uma noite de sono em uma cela”, independente de quem fosse. Havia um nome que ele proibiu que fosse citado dentro de casa, por ser um oficial que o perseguiu muito. Não sei qual o nome. Depois de reformado, foi convidado a ser comandante do 3º BPMMG, para ser promovido a coronel, pela promoção a major que receberia por direito e pela promoção a tenente coronel, no exercício da função. Ao retornar à reserva, receberia o merecido posto de coronel. Meu avô disse: “agradeço imensamente a honra e a confiança, mas quando entrei para “O 3º”, entrei como soldado e não imaginaria que faria tanta coisa. Mas como deixei homens de valor, sei que eles farão igual ou melhor do que eu. Estou muito satisfeito com o que eu ganho (na época, como capitão reformado) e, não me importo com promoção. Importo-me com o que eu fiz”. E continuou na reserva até o seu último suspiro.

Obviamente há o segundo lado da história que é o mais conhecido, que eram as pessoas que o admiravam. Muitas pessoas que ainda o admiram e falam muito bem dele ainda estão vivas. Alguns militares, que serviram com ele, ainda falam sobre o homem que foi; não perfeito, como qualquer um de nós, mas excepcional no que fazia. Pessoas simples passavam em frente da janela de nossa casa, à Rua do Rosário, nº 71, no Centro de Diamantina-MG, hoje uma pousada, e paravam na nossa janela, onde meu avô se sentava ao lado, para tomar um solzinho, como ele dizia. Aos poucos, pela falta de audição e visão, foi desistindo de ficar lá. Pessoas humildes, muitos tropeiros, principalmente negros descendentes diretos de escravos, paravam e conversavam com ele. Algumas pessoas o tomavam a bênção e, ele, abraçava a todos com uma voz que tinha uma mistura de carinho e trovão. Aquele trovão que exigia o cumprimento de uma ordem, com “Rs” e “Ls” bem puxados. Lembro-me que ele chamava a minha tia: “Steeelllllll! Ou Steeelllllll!”, quando queria algo, pois se tornou extremamente dependente dela.

Mas das cenas que mais me são fixas na memória são as que ele se cobrava como militar, mesmo quase sem movimentos, cego e quase absolutamente surdo, mesmo com aparelho auditivo. A banda do 3º BPMMG, nunca, jamais! Passou pelo Centro da Cidade de Diamantina sem parar na porta da nossa casa, se apresentar ao meu avô, e tocar uma ou duas músicas, em respeito e gratidão a ele. Saíam de formação, todos os militares, em épocas não oficiais e o cumprimentavam um a um. Ele, meu avô, pedia às minhas tias que o erguessem. Mesmo de bengala, cego e quase totalmente surdo, mantinha-se em posição de sentido, tremendo e gemendo, com enorme dificuldade, até que pedia desculpas e se sentava, de cabeça baixa por ter o mesmo espírito dentro de um corpo enfraquecido pelo tempo, pelas lutas e pelas doenças que o acometeram. O espírito de um guerreiro militar e social, preso em um corpo quase inútil. Fazia continência, enquanto ainda conseguia, como se erguendo grande quantidade de peso nos braços, com a sua mão extremamente atrofiada e trêmula e com ombros destruídos pela artrose e artrite reumatoide.

A mesma postura que tinha com os seus irmãos de armas, mesmo na reserva, era igual em potência com as pessoas mais humildes. Quando alguém que havia recebido auxílio dele e de seus amigos e amigas o visitavam, ele pedia para alguém o levantar, pois visitas devem ser respeitadas e, por isso, recebidas de pé. Abraçava e saudava as pessoas e, quando estavam com crianças, ele as abençoava, junto às pessoas que o cumprimentavam em visita. Com o tempo, não conseguia mais se erguer e nem mesmo sair do seu quarto e foi desistindo da vida, visivelmente.

Todos os dias pela manhã eu ia tomar a bênção, e ele me abraçava com um sorriso e dizia: ”forte igual a um touro! Que deus te guarde, ilumine e abençoe”. Até que um dia, não o vi e esconderam de mim que ele havia sido internado às pressas e, de lá, foi enterrado, pois não resistiu à doença. Não me permitiram ir ao seu enterro, mas me lembro que compreendi que ele havia morrido. De frente a um camiseiro com a imagem de uma santa da minha avó, me ajoelhei, com a fé de um infans, e pedi para trazer meu vô de volta e, por não ter acontecido, ainda em uma reação de fúria infantil, tive o meu primeiro conflito de fé, regado a ódio e desprezo pelas forças divinas que o meu avô tanto acreditava, que me tiraram alguém que eu muito admirava. Com os anos, compreendi a dinâmica da vida. Não há como evitar.

Um fato que me ocorreu agora, que havia me esquecido, é que eu disse que vi um monte de soldados atirando no chão no meu sonho, e que meu vô estava lá, uma noite depois da morte do meu avô e, uma de minhas tias, que não me lembro qual, disse que assim foi o enterro de pai (meu avô). Fiquei feliz, por algum motivo, por aquilo.

Deixo, pela segunda vez, alguns poucos relatos sobre a vida do meu avô e, desta vez, com a minha convivência com ele. Homem que fez história nas fileiras da primeira e mais tradicional polícia militar da Federação, tal como foi e continua sendo um dos dois nomes históricos, os dois Joãos, como ele dizia, que criaram e prosseguiram com a mais tradicional banda militar de nosso país, que ainda me pergunto, por qual motivo tal feito não é ovacionado. Com essa banda, tirou muitas pessoas da miséria e levou alegria e alimento para as almas de outras tantas pessoas que estavam em miséria emocional.

Sinto-me nesta obrigação de compartilhar um pouco sobre o meu avô e da minha pouca convivência com ele, pois o seu falecimento aconteceu comigo tendo, no máximo, dez anos de idade, mas me lembro muito bem dos acontecimentos e, posteriormente, de todas as histórias relatadas sobre ele, já na adolescência e idade adulta. Neste período, ouvia os seus discos e admirava as suas fotos que, infelizmente, muitas delas foram perdidas por puro e simples desleixo. Lembro-me de um relógio de bolso extremamente elegante, que ele olhava as horas, ainda com chapéu e bengala, com ternos bem feitos e de cores sóbrias.

Também deixo a mensagem de que os frutos de ações grandiosas não são necessariamente potências de boas consequências. Qualquer pessoa que queira produzir algum tipo de equidade entre excluídos e os demais, sempre irá gerar sensação de insegurança aos grupos chamados de elite, pois sem excluídos, os seus direcionamentos perversos não terão alvo. Então, eles combatem os que tentam levar consciência e melhores condições de vida, pois quem está em grande necessidade, se dobra a qualquer humilhação, apenas para subsistir, facilitando os alcances escusos dos que estão no domínio. Sempre há e sempre haverá rivais e, estes, comumente são tenazes. Daí a necessidade de compreendermos que devemos firmar os nossos princípios existenciais e mantê-los, doa a quem doer, agrade ou desagrade a quem for. Devemos compreender que estamos construindo um algo melhor para as pessoas que foram abandonadas pelos poderes públicos ou pelas consequências existenciais comuns, comumente chamada esta última situação, de abandonados pela sorte. Afinal, firmar princípios e aplicá-los inteligentemente, independente das consequências a nós, deixando um mundo melhor, cada um na proporção que consiga alcançar, foi o que um grande mestre do conhecimento, de nome Yeshua, nos deixou em seu legado, quando defendendo os excluídos, foi alegremente crucificado e, alegoricamente ou não, ressuscitou e até hoje está em meio a nós, bastando que compreendamos que, desde o Antigo Egito, era ensinado que aquele Ser humano que produzir boas ações, sempre ressuscitará quando o seu nome for citado, ao longo dos tempos, pois as suas ações estarão sempre vivas e, assim, a pessoa também estará viva.

 

Carlos Alexandre Costa Leite, neto de João Júlio Costa.

 

Obs.: deixo este texto livre para compartilhamento ou cópia.

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