Neste artigo
pretendemos estudar as cerimônias de aclamação do rei D. João VI ocorridas em
Tejuco em 1818. A decodificação do rico arsenal de figurações estéticas
encontradas naquelas celebrações pode se constituir em estratégia privilegiada
para o entendimento da criação, naquele momento, de mitos que dariam
sustentação e direção aos objetivos de afirmação do prestígio político do rei e
de consolidação de seu domínio sobre aquela região e sobre todo o território
brasileiro. Exploraremos aqui sobretudo o conflito de memórias entre os
significados simbólicos das celebrações ocorridas em Minas e a revolta da
população contra a exploração colonial portuguesa ocorrida cerca de três
décadas antes na região.
Palavras-chave: D. João VI; cerimônias de aclamação; mitos e
memórias; domínio e território; Estado-Nação no Brasil; mitos e significações
simbólicas.
ABSTRACT
In this article we
want to study the ceremonies of acclamation of king John VI that took place in
Tejuco in 1818. The decoding of the rich array of aesthetic images found in
those celebrations may be a privileged strategy to the understand of the creation,
at that moment, of the myths that would support and direct the affirmation of
the political prestige of the king and the consolidation of his domain on the
region and on the whole Brazilian territory. We will explore here especially
the conflict of memories between the symbolic meanings of the celebrations that
occurred in Minas and the revolt of the people against the Portuguese colonial
exploitation that had occurred about three decades before in the region.
Key
words: King John VI; ceremonies of acclamation; myths and
memories; domination and territory; State-Nation in Brazil; myths and symbolic
meanings.
RÉSUMÉ
Dans cet article on
examinera les cérémonies d'acclamation du roi D. João VI qui ont eu lieu à
Tejuco en 1818. Le décodage de la riche variété d'images esthétiques présente
dans ces célébrations peut être une stratégie privilégiée pour comprendre la
création, à ce moment-là, des mythes qui donneraient soutien et orientation au
projet d'affirmation du prestige politique du roi et à la consolidation de sa
domination sur la région et sur tout le territoire brésilien. On analysera en
particulier le conflit de mémoires entre la signification symbolique de la
célébration et la révolte du peuple de Minas contre l'exploitation coloniale
portugaise qui avait éclaté dans la région environ trois décennies avant.
Mots-clés: D.
João VI; cérémonies d'acclamation; mythes e mémoires; domaine et territorie;
l'Etat-Nation au Brésil; mythes et signification symbolique.
Imagens do google.
Os viajantes
estrangeiros que passaram pelo Brasil ao longo dos vários momentos de sua
história deixaram registros minuciosos sobre aspectos múltiplos da vida social,
econômica e política do país. Contudo, ao longo de quase todo o período
colonial, a presença de estrangeiros em solo brasileiro foi muito limitada. A
interdição portuguesa à entrada no Brasil de visitantes de outros países,
vigente desde 1591, cessaria apenas com a abertura dos portos decretada em 1808
pelo príncipe regente D. João, de Portugal. Somente a partir de então se
intensificou a vinda de estrangeiros ao Brasil, configurando-se uma espécie de
redescoberta e revisitação do país pelos viajantes.
Entre os viajantes
estrangeiros que percorreram o Brasil nesse período destacam-se os alemães Spix
e Martius, não só pelo imenso inventário científico que fizeram da natureza
local, mas também pelos ricos depoimentos que colheram da cultura e da
sociedade brasileira da época (Spix & Martius, 1976). Tais depoimentos
incluem uma minuciosa descrição das festas de aclamação do rei D. João VI, em
1818, realizadas no arraial de Tejuco (atual Diamantina), na região das Minas,
que serão objeto mais imediato de nossas preocupações neste artigo.
A igreja matriz de
Santo Antônio, edificada em uma praça, foi o centro em torno do qual se desenvolveu
o arraial de Tejuco, com a construção, desde meados do século XVIII, das
principais casas, sobrados e solares dos intendentes do ouro e diamante. Tejuco
era uma aglomeração que não poderia ser considerada pequena para os padrões da
época. No terceiro quartel do século XVIII o arraial contava com quase 510
casas dispostas em 19 ruas e 7 becos, habitadas por um total de 884 moradores
livres. Quando o viajante francês Saint-Halaire por lá passou, em inícios do
século XIX, o núcleo urbano possuía por volta de 6 mil habitantes e cerca de
800 casas. Ressaltou ele a existência de um ambiente de luxo e riqueza,
movimentado por um comércio cujas lojas estavam repletas de objetos importados,
entre os quais louças da Inglaterra e da Índia. Saint-Hilaire ressaltou ainda
que o ambiente intelectual em Tejuco era o mais fértil da capitania de Minas,
cuja elite instruída sabia falar fluentemente o francês, sua língua materna.
Havia em Tejuco uma ópera onde eram encenadas peças populares da época. Alguns
artistas, como músicos e pintores, mereceram destaque pelo refinamento da arte
que apresentavam.
No levantamento de
alguns inventários de homens importantes do arraial foram encontradas
bibliotecas com muitos volumes de livros escritos por filósofos iluministas e
escritores europeus. Eram inúmeros os estudantes de Tejuco formados em
universidades do exterior. No ano de 1782, quase a metade dos candidatos
mineiros a vagas na Universidade de Coimbra procedia de Tejuco e de Serro do
Frio, o que explica a vida intelectual relativamente movimentada do arraial.1 Por essa importância econômica, social, política e
cultural, o arraial de Tejuco não poderia ficar fora das festividades de
aclamação do rei D. João VI.
Os rituais e as
festas cívicas, religiosas e populares não eram novidade no Brasil e ocorreram
durante quase todo o período colonial. Os bragantinos nunca perdiam a
oportunidade de realizar grandes festejos por ocasião da aclamação de monarcas,
do nascimento de príncipes, aniversários e casamentos de membros da família
real. Os festejos eram realizados em Portugal, mas não deixavam de ter sua
versão alegre e barulhenta no Brasil. Lembremos, a título de exemplo, a grande
pompa de que se revestiu na colônia o anúncio, em 1793, de uma festa em
comemoração do aniversário da princesa da Beira, depois D. Maria I, rainha de
Portugal. 2
Contudo, os festejos
de aclamação descritos por Spix e Martius revestem-se de características
singulares em relação aos que ocorriam anteriormente, por estarem articulados a
profundas modificações históricas em curso naquele momento. Com a transferência
da Corte, o Rio de Janeiro, cidade-sede do Império
Luso-Brasileiro,começou a se apresentar como centro de
um complexo político-administrativo que abrigaria posteriormente a capital do
Brasil independente (Gouvêa, 2005: 707-752). Ademais, havia outra grande
novidade: o rei não estava mais em Portugal, e sim no Brasil. A partir daquele
momento os habitantes do Brasil passariam a viver na contingência de introjetar
e acostumar-se à idéia de ter um rei à frente da cena política. A criação de
rituais em que se teatralizava um grande jogo simbólico no qual a realeza
aparecia como personagem frequente3expressava, entre outros aspectos, tal
exercício de dominação política.
As cerimônias de
aclamação do rei D. João VI configuravam-se como uma grande oportunidade para
que a monarquia bragantina exibisse poderio e grandeza, num momento em que
encontrava sérias dificuldades para manter as colônias sob seu domínio político
e econômico. Mas ao mesmo tempo apresentaram-se também como o primeiro momento
da construção de um capital simbólico fundamental, aproveitado pelo Estado
brasileiro a partir de 1822 para a criação de uma peculiar tradição monárquica,
adaptada aos costumes dos trópicos.
As cerimônias
aconteceram nas principais províncias do Brasil, mas no Rio de Janeiro, sede do
aparato de Estado português naquele momento, ganharam, como era natural, a
dimensão de um espetáculo que se assemelhava às pompas das grandes celebrações
reais portuguesas. A vinda recente de artistas da Missão Francesa constituiu-se
numa feliz coincidência que permitiu o engajamento de Debret, Grandjean de
Montigny e Auguste Marie Taunay na construção dos monumentos comemorativos. Um
templo consagrado a Minerva, com 17,60m de altura e 63,80m de fachada, foi
construído à beira do cais. Mais para o centro do largo do Paço foi construído
um arco do triunfo, com 13,20m de altura e 15,40m de largura, com colunas,
estátuas e alegorias de toda ordem. Um obelisco real erigia-se no centro da
praça, e era também ali que a multidão esperava pela saída do rei do interior
do palácio, de onde, ostentando trajes e objetos carregados de significações
simbólicas, faria o juramento real.4
Assim, as
festividades de aclamação realizadas no Rio de Janeiro, lugar central e estável
identificado com a soberania pública, espelhavam a autoridade política e o equipamento
simbólico da monarquia. Todavia, realizar o cerimonial apenas no Rio de Janeiro
não assegurava tudo, principalmente diante da necessidade de dominação sobre um
território em permanente ameaça de desintegração como foi o Brasil ao longo de
todo o primeiro reinado. Seria necessário que o soberano se deslocasse para
várias partes do reino, principalmente para as regiões onde havia sérios
conflitos políticos. Porém a própria natureza da cerimônia de aclamação
impossibilitava a realização do espetáculo físico da soberania do rei,
minuciosamente ritualizado, como ocorreu no Rio de Janeiro. Não sendo isso
possível, o Estado precisava acionar seus equipamentos administrativos e suas
instituições para que a autoridade soberana se fizesse sentir em lugares
distantes, mesmo sem a presença do rei.5 Foi esse o caso das cerimônias de aclamação do rei
ocorridas em Tejuco simultaneamente às que se realizavam no Rio de Janeiro em
fevereiro de 1818.
Sem a presença do
soberano, as festividades foram realizadas com a imagem do rei D. João VI
apresentada de maneira grandiosa ao numeroso público presente e acompanhada de
danças, teatros e várias outras exibições. A organização das cerimônias esteve
a cargo de Manuel Ferreira da Câmara, autoridade política de maior poder em
Tejuco naquele momento. Nomeado intendente geral das Minas Gerais e Serro do
Frio em 1807, o intendente Câmara, como era conhecido, revelou-se um quadro à
altura da relevância da tarefa legada pelo equipamento administrativo do
Estado. De fato, Ferreira da Câmara, embora nascido na capitania de Minas
Gerais, realizara seus estudos na Universidade de Coimbra, pertencera à
Academia Real das Ciências de Lisboa e empreendera uma viagem científica pelos
principais centros de mineração da Europa central e setentrional. Seu processo
de formação e especialização científica transformou-o em um personagem
importante no âmbito da política de renovação cultural-científica do governo de
D. Maria I. Tal política tinha como principal objetivo a criação de um novo
corpo de funcionários ilustrados que forneceria pessoal à burocracia para
servir ao reino português e suas colônias.6
Foi nesse contexto
que os viajantes Spix e Martius, passando pela região, conheceram Ferreira da
Câmara, assistiram e descreveram as festividades de aclamação do rei D. João VI
em virtude da morte, em 1816, da rainha D. Maria I. Ambos eram alemães e vieram
ao Brasil acompanhados de outros cientistas, contratados pelo imperador
Francisco I, pai da arquiduquesa D. Leopoldina, que à época se preparava para
casar-se com D. Pedro de Alcântara, herdeiro da Coroa portuguesa.
Spix e Martius
permaneceram no país de 1817 a 1820 e percorreram nesse período várias
localidades brasileiras, entre elas Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais,
Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará e Amazonas. Mesmo referindo-se a maior parte
de suas observações à flora e à fauna, é impossível ignorar a relevância das
anotações que deixaram relativas às características peculiares das principais
cidades brasileiras e ao caráter de sua população. Em suas avaliações sobre as
possibilidades da constituição de um Estado-Nação no Brasil, eles foram céticos
e pessimistas quanto à contribuição dos negros e algumas vezes esperançosos em
relação a outros segmentos sociais pobres da população.
A problemática do
espaço urbano esteve na pauta de observações de Spix e Martius sobre o Brasil,
pauta esta orientada, entre outras questões, pela problemática urbana e
sanitária europeia em discussão na Europa à época em que visitaram o Brasil.7 Pensar essas questões era indispensável para que
pudessem pensar também a organização de um espaço
político que se constituísse em arcabouço institucional
sólido para a construção da nova realidade brasileira. Assim, não escaparam a
seus olhares, por exemplo, aspectos como o ritmo, o traçado das ruas, as
pessoas, a movimentação dos portos, as operações manuais de carga e descarga,
os vendedores ambulantes e o som da música que acompanhava o trabalho dos
negros.
Nos discursos de Spix
e Martius (1976: 42, vol. 1) sobre a população dos arraiais, vilas e cidades
por onde passavam, as representações construídas sobre o negro são
particularmente reveladoras de como, no pensamento deles, a modernidade teria
que se firmar sobre a selvageria da América. Logo que desembarcaram dos navios,
expressaram a desconfortável sensação de se encontrarem em algum estranho
continente do mundo, principalmente observando a imensa variedade de negros e
mulatos que perambulavam por toda a parte. Para
eles, aqueles homens seminus, de natureza bruta e inferior, feriam a
sensibilidade de qualquer europeu que tivesse acabado de deixar os costumes
delicados e as fórmulas obsequiosas de sua pátria. 8
As características de
diário de viagem e o tempo de que dispunham os viajantes para efetuar seus
registros determinavam muitas vezes que eles se limitassem a descrever aquilo
que consideravam essencial. Mas nem sempre o problema era o tempo para o
registro, e sim a relevância que este ou aquele fato adquiriam diante do filtro
cultural deles próprios. Isto revela o quanto o exercício de transpor para a
escrita e eternizar um acontecimento em forma de lembrança (Le Goff, 1984:
11-50) transformava os viajantes em senhores da memória e do esquecimento em
relação àquilo que observavam no Brasil. Sem dúvida, seus registros seletivos
dos vários aspectos da sociedade brasileira passavam sempre por manipulações
conscientes ou inconscientes que a censura do imaginário da modernidade exercia
sobre a memória individual ou coletiva daquele período histórico. Diante disso,
complementar tais descrições com informações de outras fontes torna-se quase
sempre imperioso para o conhecimento do fenômeno em sua dimensão maior.
Recorremos, então, às
anotações do memorialista Joaquim Felício dos Santos (Santos, 1976), que também
descreveu as celebrações de Tejuco e a aclamação de D. João VI, para
complementar e auxiliar na compreensão que Spix e Martius tiveram daquelas
festividades. Felício dos Santos nasceu em 1828 na Vila do Príncipe, portanto,
na mesma região de Tejuco, alguns anos depois que por lá passaram Spix e
Martius. Nas arcadas do velho Convento do Largo de São Francisco, em São Paulo,
Felício dos Santos foi contemporâneo de José de Alencar, considerado o maior
romancista do período romântico brasileiro. Como Alencar, formou-se também em
Direito e militou ativamente na política e no jornalismo. Em 1850 voltou para
Tejuco, já então denominado Diamantina. A reunião de artigos publicados no
periódico O Jequitinhonha,
do qual foi redator principal, resultou em seu livro Memórias
do Distrito Diamantino, com informações
preciosas sobre as festividades de Tejuco.
O que Spix e Martius
observaram em Tejuco sobre as cerimônias de aclamação e o material
posteriormente reunido por Joaquim Felício dos Santos sobre a mesma questão
formam um rico arsenal de figurações estéticas, cuja decodificação pode se
constituir em estratégia privilegiada para o entendimento da criação, naquele
momento, de mitos que dariam sustentação e direção à nova realidade a ser
inaugurada no Brasil: a de sua transformação em Estado independente, porém nos
moldes concebidos pela metrópole portuguesa. Desenvolveremos aqui a ideia de
que tais objetivos dependiam da afirmação do prestígio político do rei diante
do povo e das elites regionais brasileiras, quase sempre divergentes quanto a
seus interesses específicos (Graham, 2001: 17-56). Isso envolvia muitas vezes
um conflito de memórias entre os significados simbólicos das celebrações reais
e os diversos imaginários coletivos regionais que se criaram ao longo da
dominação colonial portuguesa. As celebrações de aclamação do rei D. João VI
ocorridas em Tejuco são apenas um exemplo do caráter específico que elas
poderiam assumir em cada região onde eram realizadas. Trata-se, pois, de um
desafio dos mais instigantes desenvolver um justificado esforço no sentido de
desvendar alguns dos enigmas veiculados pelo vocabulário simbólico daquelas
celebrações.
Spix e Martius
iniciam a descrição das celebrações mencionando os atores e o povo reunidos e
percorrendo as ruas em préstito festivo até chegar à praça onde a apresentação
deveria ocorrer. O cortejo era aberto por arautos, espécie de oficiais que nas
monarquias do Antigo Regime e da Idade Média faziam as publicações solenes,
seguidos do coro de cantores e mais quatro figurões, representando as vastas
possessões da monarquia portuguesa. Esses personagens portavam um globo
terrestre decorado com os emblemas do europeu, do índio, do negro e do
americano, acima do qual estava a imagem de D. João VI. Fechava o préstito um
grupo numeroso de rapazes e raparigas vestidos como pastores, trazendo
guirlandas de flores com as quais, chegando ao teatro, enfeitavam a imagem do monarca,
sob as aclamações do público presente. Tais descrições indicam claramente a
vinculação das festividades de Tejuco às principais regras da tradição medieval
europeia. Porém, na continuidade das descrições feitas por Spix e Martius,
vemos que as culturas locais eram também partes constitutivas das festividades.
Estabelecia-se, pois, um diálogo entre a tradição europeia de corte e a
formação cultural multiétnica do Brasil.
Segundo os viajantes
Spix e Martius, depois os coros executaram danças portuguesas, das Índias
Orientais e dos negros, e no intervalo apareceram quatro arlequins "que
divertiam a numerosa assistência com pulos bizarros, parodiando os desajeitados
gestos dos selvagens americanos" (Spix & Martius, 1976: 39, vol. 2).
Para representar a época cavalheiresca da Europa foi exibida a simulação do
tradicional combate entre mouros e cristãos, mais conhecido como cavalhada.
Incorporados às tradições locais, sempre que esses folguedos eram apresentados
provocavam fortes emoções nos espectadores. Spix e Martius fizeram uma
descrição minuciosa e francamente elogiosa da exibição.
Como parte das
festividades de aclamação, os negros também apresentaram seus festejos. Ao
mesmo tempo que homenagearam D. João VI com suas congadas, aproveitaram a
oportunidade para escolher o rei e a rainha de sua comunidade. Contudo, em
relação aos festejos apresentados pelos negros, em que foram escolhidos o rei
do Congo e a rainha Xinga, os viajantes não foram nada simpáticos. Tudo parecia
muito ridículo para eles, desde as imagens dos santos católicos tradicionais
pintados de preto, até a banda de música com seus componentes vestidos com
roupas de cores berrantes, rotas e cheias de buracos. Enfeitados com grandes
penas de avestruz saíam eles ao som de pandeiros, tambores, pífanos, chocalhos,
canzás e marimbas.
Enfim, desse diálogo
que se estabelecia entre o estilo europeu e os multifacetários elementos
nacionais, Spix e Martius pareciam compreender apenas o primeiro. De tudo o que
assistiram sobre o espetáculo dos negros, restou-lhes principalmente a
lembrança da algazarra infernal que faziam com seus rústicos instrumentos,
os pulos e cabriolas, as singulares caretas e abjetas posições, tudo formando
um espetáculo tão bizarro que
imaginaram estar diante de um bando de macacos (Spix & Martius, 1976:
40-41, vol.2).
As festividades de
Tejuco, segundo Felício dos Santos, foram divulgadas na Bahia em 1819, por meio
de um folheto impresso que foi por ele amplamente utilizado na elaboração de
seu livro. Infelizmente Felício dos Santos não traz maiores informações a
respeito de tal folheto. Sabemos, contudo, que o poder monárquico possuía meios
materiais e humanos para divulgar através de folhetos as diversas festividades
de aclamação de D. João VI por diversas regiões do Brasil. Lembremos que nos
porões do navio Medusa,
que trouxe a família real para o Brasil, veio encaixotada uma gráfica novinha
em folha que assumiria o papel de Impressão Régia, funcionando a partir de 13
de maio de 1808, data de sua criação. A gráfica da Impressão Régia inaugurou
seus trabalhos estampando em um folheto de 27 páginas a relação dos despachos
publicados no aniversário do príncipe regente. Certamente a Impressão Régia
continuou desempenhando no Brasil o papel que desempenhavam os folhetos (impressos
e manuscritos) produzidos em Portugal entre os séculos XVI e XVIII, de meios
persuasivos de exercer o poder político na época moderna (Monteiro, 2009: 203).
Reproduções dessa
natureza eram importantes instrumentos para aumentar e ampliar para a maior parte
possível do território a visibilidade do rei e de eventos como os que ocorriam
em Tejuco. Assim, o livro de Felício dos Santos, apoiado nesse folheto, amplia
e complementa as informações de Spix e Martius sobre aquelas festividades. No
livro aparece, por exemplo, a descrição da iluminação geral da cidade iniciada
no dia 28 de maio de 1818, com duração de seis dias. A iluminação deu mais
ênfase à casa de Ferreira da Câmara, que se distinguia entre os palacetes
públicos e residências dos homens influentes de Tejuco. Felício descreve a
apresentação solene de um Te Deum, de
uma tragicomédia, além das cavalhadas e dos banquetes. Já Spix & Martius
descrevem as seis janelas do palacete de Ferreira da Câmara, onde foram
distribuídos quadros com dísticos explicativos em latim de divindades que
representavam o Despotismo, a Aristocracia, a Monarquia, a Democracia, a Anarquia, aJustiça, a Clemência, o Reino
Unido, o Casamento e
o Amor Conjugal (Spix
& Maritus, 1976: vol.2, 235-238).
Não é tarefa simples
fazer a leitura dos retratos, peças de teatro, pinturas e esculturas que
compuseram as festividades, pois elas pertenciam a outro tempo e a outro
momento da formação cultural brasileira. Para os leitores atuais há um
considerável risco de efetuar julgamentos anacrônicos em relação às
festividades de Tejuco, desconsiderando as modificações nas mentalidades e nos
valores havidas desde então até nossos dias. Por isso não negligenciamos as
descrições que delas fizeram os próprios contemporâneos.9 Foi indispensável, contudo, perscrutar as intenções
que motivavam todas aquelas apresentações para não correr o risco de ficar com
o que as fontes diziam sem procurar revelar e entender o que elas de fato
escondiam.
Por exemplo, as
referências ao passado, sobretudo aos deuses e heróis clássicos, que apareceram
ao longo de todas as festividades, eram alegorias que deveriam ser entendidas
como referências indiretas aos conflitos e à organização política vivida
naquele presente. E os espectadores eram treinados para construir esse tipo de
entendimento. Em cada um dos quadros distribuídos pelas seis janelas do
intendente Ferreira da Câmara havia inscrições explicativas em latim. Elas
davam eficácia aos retratos, pois instruíam os espectadores sobre o modo de
interpretar o que viam. Para cada uma das referências que apareciam nos quadros
havia uma explicação no folheto, que foi reproduzida por Felício dos Santos em
seu livro.
Alguns dos emblemas
dos quadros veiculavam mensagens referentes a formas de governo com as quais
Portugal não se identificava ou que até mesmo abominava. O quadro Despotismo explicava
ao público assistente que aquela não era uma boa forma de governo. Para dizer
isso retratava um nobre e austero muçulmano portando em uma das mãos um cetro
de ferro e tendo a seus pés aquele a quem dominava com brutalidade. A crítica
era evidente, pois o déspota era muçulmano (portanto, não cristão). Ademais, o
cetro, um dos símbolos do poder real, era confeccionado com material não nobre.
Os quadros Democracia e Anarquia veiculavam
mensagens com endereços certos. Formavam uma clara advertência ao povo sobre os
perigos das insurreições que ocorriam no Brasil daqueles tempos e de épocas
anteriores, criando uma situação política de descrédito em relação aos
movimentos de contestação da época. Na descrição de Felício dos Santos, a Democracia era
representada por uma donzela sedutora em seu porte e alinho, suspensa nos ares
com dois braços abertos, designando os extremos dessa forma de governo. A seu
lado estava o monstro da inveja, tendo sob seus pés um monte de cobras e
víboras escondidas entre espinhos. Acima de sua cabeça via-se a Razão fugindo. A Anarquia apresentava-se como advertência ainda mais severa
às cerca de seis a oito mil pessoas que assistiam às festividades. Estava
personificada sob a forma de uma fúria desalinhada e sem compostura. Por cima
de sua cabeça se via a paz a fugir e a seu lado apareciam searas em chamas.
Abaixo estavam as belas artes em
ruína e o compasso quebrado. Aos seus pés via-se o monstro da discórdia, que
reina quando um povo se acha em tão desgraçada situação, ameaçando destruir
tudo. Todas as contestações a que o governo central era submetido pelos
movimentos insurrecionais da época deram ensejo a que nas festividades de
Tejuco a representação da deusa da Justiça fosse feita de forma muito singular. Além da
balança que a distinguia, tinha ela também a espada cravada na boca do monstro
da insurreição, castigando assim a perigosa liberdade de falar e seduzir, que
tanto mal fazia aos governos estabelecidos.
Às noites havia
apresentações de tragicomédias na praça de Santo Antônio. A que foi descrita
por Spix e Martius, considerada por eles sem muita importância, recebeu o
título A noiva reconquistada. O pano de cena da peça foi pintado, ainda segundo
Spix e Martius, por um brasileiro, que, embora sem estudos, usou um colorido
adequado e desenvolveu com muito gênio as proporções, o que para os viajantes
já prenunciava certo desenvolvimento artístico no Brasil. Nele estava pintada
uma figura representando o gênio do Brasil, que pisava a hidra da desunião e ao
mesmo tempo oferecia aos habitantes um molho de espigas. Felício dos Santos
referiu-se à apresentação da peça O
salteador exaltando o bom desempenho dos atores e
principalmente do casal que representou os personagens Camila e o Capitão dos Ladrões. O cenário para a apresentação da peça compunha-se
em sua fachada de um arco da ordem jônica, coroado com armas do Reino Unido. O
pano de cena da peça era uma cópia do quadro Clemência, afixado em uma das janelas da casa do intendente
Ferreira da Câmara. Portanto, as festividades de aclamação de D. João VI, que
ocorreram em várias partes do Brasil, incluíram, como podemos constatar no caso
de Tejuco, meios de divulgação os mais diversos, veiculando mensagens
consideradas necessárias para o momento político que vivia o Brasil. Não
faltavam estátuas e retratos do próprio rei, a representação de várias
divindades, a impressão de folhetos e pinturas de panos de cena ajudando a
compor as narrativas das tragicomédias apresentadas. As mensagens transmitidas
misturavam palavras, imagens e ações para as quais colaboravam roteiristas,
pintores e coreógrafos.
Toda a complexa
alegoria acima descrita envolvia a tematização da organização do poder em
vários planos. No âmbito das relações de Portugal com seu império colonial, as
descrições de Spix e Martius são bastante esclarecedoras. A autoridade soberana
do rei encarnada pela estátua representando a figura ao mesmo tempo mortal e
imortal de D. João VI, situada acima do globo terrestre transportado por quatro
figurões, evocava a centralização absolutista e a teorização da origem
extra-social do poder baseada no direito divino. O olhar do rei está acima dos
olhos dos espectadores, sublinhando sua posição superior. Para glorificar o
rei, o cortejo realiza-se de forma triunfal, como faziam os romanos da era
clássica, quando a realeza e seu cortejo adentravam as cidades. A exibição de
todas as possessões portuguesas representadas por figurões e emblemas fazia
todo sentido num momento em que as preocupações se voltavam para promover a
soldagem do agonizante império português. A fraternidade e igualdade entre europeus,
negros, americanos e índios parecia fundamentar uma unidade e uma identidade
que encontravam sua figuração no corpo do rei. Se, em outras partes, essa
representação estava intensamente abalada desde fins do século XVIII, em
virtude do desenvolvimento da ideia do individualismo e do progresso, aqui,
essas mesmas ideias davam sustentação à imagem teológico-política de um poder
identificado com a sociedade do Antigo Regime.
Outro plano de
organização do poder aparece também, de forma emblemática, quando as alegorias
são analisadas no âmbito dos conflitos e ressentimentos entre interesses
metropolitanos e complexos e interesses brasileiros diferenciados, tanto no que
respeita à região das Minas quanto ao Brasil como um todo. Essas alegorias
aparecem, sobretudo, nas peças de teatro descritas por Spix e Martius e por
Felício dos Santos. A peça tragicômica A
noiva reconquistada não teve seu conteúdo inteiramente especificado nas
anotações de viagem de Spix e Martius. Os viajantes nos deram a conhecer apenas
o título da peça e a descrição da pintura de seu pano de cena. O mesmo pode ser
dito da peça O salteador, descrita
por Felício dos Santos. Contudo, embora escassas, essas informações sugerem de
forma indiciária algumas chaves para sua decodificação. O título A
noiva reconquistada e os personagens Camila e o Capitão
dos Ladrões de O salteador indicam
que o mito central de ambas as peças é o do casal. O mito do casal aparece
também, e com muita transparência, no quadro afixado na quarta janela da casa
do intendente Ferreira da Câmara, em que se estampava o emblema do Amor
conjugal,representado por dois corações que
ardiam em uma mesma pira, e por um casal de pombos que se afagavam. Em outra
janela, por fim, estampa-se mais uma figuração mitológica do tema do casal: ao Reino
Unido seguia-se o emblema do casamento, no qual a Religião unia um lindo par. Por cima da
Santa Cruz, distintivo da Religião, viam-se juntas as armas do Império
Austríaco e as do Reino Unido. A presença simbólica das armas do Império Austríaco
entrelaçadas às do Reino Unido devia-se ao casamento do príncipe D. Pedro com a
princesa Leopoldina da Áustria, cujo contrato de núpcias fora contraído em
20/11/1816.
O mito do casal é
muito antigo, mas capaz de renovações vigorosas. Aparece, nesse período, na
composição daFlauta mágica de
Mozart e na continuidade dessa ópera que Goethe tentará encaminhar
(Starobinski, 1988: 132-151). No plano interno, o mito do casal emerge como uma
das matrizes mais fundamentais da formação da nação.10 Nos termos em que aparece nas peças e no quadro da
janela, sugere sempre a busca da felicidade através da realização de um par. Se
tomarmos a idéia de reconquista trazida no título da peça A
noiva reconquistada poderemos observar o quanto o tema da felicidade
está articulado ao tema do poder. Trata-se de um poder que não é de forma
nenhuma derrisório, porque não supõe a conquista da felicidade em um nível
elementar, com o objetivo de satisfação imediata. Ao contrário, a conquista da
felicidade do casal envolve, por parte do herói, a dura luta pela reconquista
da noiva perdida. A partir do que é tematizado no pano de cena pode-se concluir
que a felicidade do casal implica um verdadeiro rito iniciático em que o herói
deve enfrentar e derrotar o monstro. É o que comentam Spix e Martius, sobre o
pano de cena: o gênio do Brasil está pisando a hidra da desunião. Uma vez
cumprida a tarefa de matar a hidra, como fez Hércules em um de seus doze
trabalhos, nada mais haveria que pudesse atrapalhar a união feliz entre
Portugal e Brasil. O ato final da morte da hidra não é senão o limiar de uma
longa viagem em que o herói, caminhando em direção à verdade, descobre progressivamente
a voz da consciência. Trata-se de uma simbólica bastante utilizada pelo
pensamento das Luzes, em que a caminhada paciente da não razão (animal,
errante) transforma-se em razão e senhora de seu próprio poder (Starobinski,
1988: 138)
A referência ao herói
mítico da Grécia Antiga e à hidra que aparece na peça apresentada em Tejuco vem
dos primórdios do desenvolvimento capitalista. A era moderna, marcada pelo
surgimento do movimento neoclássico, quer redescobrir a simplicidade na arte e
no pensamento e colocá-la em oposição ao desperdício de força do estilo barroco
e rococó tão ao gosto da decadente aristocracia europeia. Através do movimento
neoclássico, a sociedade da época retraça a vida dos gregos, recolhendo dela o
que podia ser imitado e submetido a um processo de interpretação e adaptação
aos valores cívicos, ao capitalismo e aos Estados nacionais em formação
(Starobinski, 1988: 110-112). É o que ocorre, por exemplo, quando os modernos
recorrem ao mito de Hércules, o herói que, com a ajuda de seu sobrinho Iolaus,
após muita luta, finalmente mata o monstro decepando sua cabeça central e
cauterizando o coto com um ramo flamejante. Entre os séculos XVII e XVIII os
mercadores, os manufatureiros, os planteurs e
os oficiais dos reis de países europeus diziam repetidamente que a construção
das rotas comerciais, a implantação das colônias, enfim, a edificação de uma
nova economia transatlântica constituía um esforço de proporções hercúleas.
Esses feitos envolviam também a organização dos trabalhadores da Europa, da
África e das Américas para produzir e transportar ouro e prata, peles de
animais, peixes, tabaco, açúcar e manufaturas. Para os gregos, Hércules foi o
unificador do estado territorial centralizado, e para os romanos significou uma
vasta ambição imperial. Por tudo isso os arquitetos da economia atlântica,
ligados ao poder político da era moderna, encontraram em Hércules um símbolo do
poder e da ordem. Por outro lado, a hidra aparece como o símbolo antitético de
Hércules, trazendo desordem e resistência ao processo de implantação e
consolidação dos Estados e da moderna economia capitalista. Ou seja, os
trabalhadores pobres sem terra, os funcionários dos reis nas colônias, os
soldados, os marinheiros e os escravos africanos atuavam como as numerosas e
sempre mutantes cabeças da hidra, desenvolvendo sempre novas formas de
tumultos, insurreições e revoluções contra os governantes (Linebaugh &
Rediker, 2000: 1-7; 143-173).
Compreende-se então a
presença da hidra na peça A noiva reconquistada. Fartamente presente nas figurações estéticas
europeias para caracterizar a grandeza da construção da economia capitalista e
as resistências de setores dominados da sociedade a essa construção, a metáfora
da hidra, identificada com a presença daquela criatura venenosa nascida de
Typhon e Echidna, encontra campo fértil também no Brasil. Ela aparece nas
numerosas insurreições e levantes que ocorrem desde fins do século XVIII e que
só serão parcialmente controlados por volta de meados do século XIX, com o
início do reinado de D. Pedro II. Pouco antes da aclamação de D. João VI (6 de
março a 19 de maio de 1817) ocorria o movimento da insurreição pernambucana.
Documentos de época se indagam por que a cerimônia de aclamação de D. João VI
não se realizou logo após a morte da rainha D. Maria I, como era de se esperar.
As próprias fontes indicam que a cerimônia ocorreu tardiamente, apenas em 6 de
fevereiro de 1818 no Rio de Janeiro, portanto muitos meses após o seu
falecimento. Alimentava-se o temor de que a ocasião fosse aproveitada para a
realização de contestações políticas de grupos descontentes com o governo
(Luccock, 1975: 378), sobretudo rebeldes ligados à insurreição pernambucana
(Bernardes, 2006: 204-205), tirando assim o brilho das pompas cerimoniais e a
autoridade do próprio rei.
A rebeldia dos que
participaram do movimento de 1817 foi identificada por contemporâneos ligados
ao poder político da época como obra da terrível criatura. Assim que soube da
eclosão do movimento, o coronel Maler, cônsul encarregado dos negócios da
França no Brasil, apontou em seu primeiro ofício às autoridades de seu país
"o haver a hidra revolucionária conseguido erguer uma hedionda cabeça no
Brasil" (Lima, 1996: 496). O mito grego da hidra continuou a ser usado em
outros momentos conturbados do início da formação do Estado Independente no
Brasil, como em um dos pronunciamentos de Antônio Carlos na Assembleia Nacional
Constituinte de 1823, referindo-se ao perigo da "hidra de muitas
cabeças", que se manifestava perigosamente naqueles momentos (Souza, 1960:
50).
Há razões óbvias para
crermos também que a hidra do pano de cena da peça, que estava sendo morta pelo
gênio do Brasil, era uma clara alusão aos inconfidentes mineiros e seu
movimento. Os fabricadores de símbolos ligados ao poder político de D. João VI
pareciam ter como tarefa principal digladiar-se mais fortemente com a memória
coletiva que pairava sobre a população de Tejuco e toda a região que a
envolvia. O movimento foi de grande extensão, indo de Vila Rica a Tejuco, daí a
São João Del Rei, passando por Borda do Campo. Reuniões aconteceram em
distintas localidades de Minas, envolvendo também personagens de São Paulo.
Essa amplitude geográfica é um dos diferenciais do movimento em relação aos
motins ocorridos na primeira metade do século XVIII. Seu desfecho, ligado que
estava à maneira tirânica como a população das Minas era cotidianamente
vigiada, fiscalizada e brutalmente castigada pelas autoridades portuguesas,
cada vez mais ávidas na cobrança do quinto metropolitano, causou enorme desolação
por toda a capitania. O grande abalo ocorreu sobretudo após a prisão e
julgamento dos conjurados e a consequente derrota do movimento desfechada com a
forma medonha da execução de Tiradentes. Testemunhas oculares daquele
acontecimento não deixaram de mencionar a consternação dos habitantes da cidade
do Rio de Janeiro diante de execução de tão feia e de tão triste ostentação.
Richard Burton, passando pela província em meados do século XIX, registrou o
quão vivo ainda permaneciam aqueles acontecimentos na memória de seus
habitantes.11 Não é de estranhar, portanto, que os artistas e os
intelectuais a serviço do rei, que organizaram as festividades da aclamação em
Tejuco, o fizessem contrapondo-a à memória popular da região, ainda recente e
bastante viva, dos acontecimentos da Inconfidência.
As reuniões dos
líderes do movimento ocorriam altas horas da noite em casa de José da Silva e
Oliveira, pai do padre Rolim. Embora às reuniões dos inconfidentes concorressem
as principais pessoas de Tejuco, apenas o padre Rolim foi condenado. Esteve preso
em Portugal durante onze anos e meio, tendo regressado depois a Tejuco, onde
morreu em 1831 (Santos, 1976: 161-166). Portanto, à época dos festejos da
aclamação ocorridos em Tejuco, o padre Rolim, um dos principais líderes do
movimento, lá estava vivendo. Havia mensagens evidentes aos que assistiam à
peça, segundo as quais a verdadeira liberdade não estava consubstanciada na
ação dos inconfidentes, ali investidos da alegoria da hidra. A reconquista da
noiva, síntese da realização amorosa do herói, coincidia com a conquista de sua
liberdade e poder. Este poder caracterizava-se primeiramente por resultar da
capacidade do herói (o Brasil) de se impor sacrifícios, sem os quais sua noiva
não seria reconquistada. E em segundo lugar, por se ter investido, ao dominar a
hidra da desunião, de uma autoridade eficaz, capaz de impor uma ordem.
A alegoria da hidra
articulava-se também adequadamente ao quadro das transformações internacionais
da época, pois os Estados nacionais estavam em verdadeiros processos formação,
não sem resistências e lutas de setores daquelas sociedades que se opunham
àqueles projetos. E a construção de um Estado independente no Brasil
anunciava-se, seguindo o curso dos acontecimentos internacionais, de forma
inexorável com a crise do sistema colonial e a transferência da corte
portuguesa. Assim, eram estratégicam a alegoria da hidra e todas as demais,
vinculadas que estavam a projetos de natureza global, pois as festividades de
aclamação do rei não ocorriam apenas no Rio de Janeiro, mas também em outras
províncias, mesmo sem a sua própria presença. Assim as diferentes regiões
poderiam mais facilmente ir se integrando, de forma a efetivamente viabilizar
com o tempo a existência de uma totalidade que poderia ser concebida como um
Estado unificado.
Os registros daqueles
acontecimentos permitiam de fato antever o projeto de construção de um Estado
independente no Brasil, porém na forma como os portugueses concebiam tal
independência. Por exemplo, a hidra não deveria atrapalhar a feliz união entre
Portugal e Brasil. Ou seja, a construção do Estado-Nação no Brasil não deveria
ser pensada como a de um Estado independente e em oposição à antiga metrópole
portuguesa. Pelo contrário, a nova nação brasileira deveria ser continuadora da
tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa, como pensaram
posteriormente, e de forma hegemônica, os integrantes do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, fundado em 1838.
Do projeto de Estado
e de Nação no Brasil, Spix e Martius definem que os negros ficariam fora por
não serem portadores da noção de civilização. Eles aparecem mais de uma vez em
seus comentários como seres de natureza bruta e inferior, assemelhados a
macacos.12 É possível notar na leitura dos viajantes que sua
percepção de mundo estava informada por um conceito-chave da teoria humanista
de Rousseau, o de perfectibilidade. Ou seja, a capacidade dos homens de resistir
aos ditames da natureza e de se aperfeiçoar.13 Os arlequins,
que apareciam no intervalo das apresentações, não eram inteiramente civilizados
nem tampouco portadores de um poder nos moldes daquele que eficazmente impôs
ordem e autoridade, ao dominar a hidra. Os arlequins, permanentemente
representados na literatura do século XVIII, simbolizavam ainda uma força, que,
embora irreprimível, estava articulada às alegrias mais simples, espontâneas e
imediatas.14 Aqui, Spix e Martius comentam seus pulos bizarros,
imitando gestos dos "selvagens americanos". Os arlequins são então
aqueles homens de gozo simples, próximo da natureza, e estão em contato
estreito com a animalidade. Tanto quanto os arlequins, a evocação do mito do
bom selvagem (Rousseau, 1978: 201-352) também se afigurava de forma emblemática
nas festividades. O quadro que representava a Clemência, disposto
na sexta janela da casa de Ferreira da Câmara, trazia uma divindade que tinha a
seus pés, e de joelhos, um índio a quem ela oferecia a paz em
um ramo de oliveira e otrabalho em
umas espigas de trigo. Tanto os arlequins, que faziam acrobacias e distribuíam
espigas no intervalo das peças, quanto o índio ajoelhado aos pés da divindade e
recebendo a sua clemência, são portadores de uma energia que pode ser
canalizada na elaboração de dois dos maiores símbolos da civilização: o
trabalho e as artes. Os índios, os arlequins e o brasileiro sem estudo que com
tanto gênio pintou o pano de cena da peça simbolizam a própria transição
possível, a identidade parcial, e ainda rudimentar, que, mediante trabalho,
esforço e superação de obstáculo, podiam transformar a potência de sua força em poder, tal qual o personagem que dominou a hidra.
Podemos perceber que no conjunto dessas significações míticas da peça e nos
comentários de Spix e Martius vai-se delineando uma concepção segundo a qual se
reconhece a existência de um povo no
Brasil, mas ainda em potencial, ainda arlequinal.
Notas
1 Grande
parte das informações sobre o surgimento e a importância da vida social,
cultural e intelectual do arraial de Tejuco foi encontrada em Furtado (2003:
37-43).
2 Para
maiores detalhes a respeito do significado desta festa e de outras que
ocorreram no Brasil colonial, sugerimos a leitura de Del Priore (2000).
3 Para
o caráter teatral da realeza, a dimensão simbólica de seu poder político, bem
como o uso de símbolos e rituais como alicerces do poder no Brasil sob D. Pedro
II, cf. Schwarcz (1998). Para estudos do tema em questão sobre as monarquias européias,
cf. principalmente Elias (1987) e Burke (1984).
4 Para
detalhes da cerimônia de aclamação de D. João VI no Rio de Janeiro, cf. Lima
(1996: 605-622). O tema é também repassado por Rodrigo Naves para estudar como
ocorreu, a partir da vinda da Missão Francesa, a transposição da arte
neoclássica da Europa para o Brasil (Naves, 1996: 59-60).
5 Caberia
aqui destacar dois importantes trabalhos que instigam, teoricamente, reflexões
sobre a formação do Estado brasileiro e outras experiências de unificação de
Estados nacionais: primeiro, o de Jacques Revel sobre o processo secular de
constituição de conhecimento, de domínio e unificação do espaço nacional
francês sob o controle de um soberano, do século XIII ao XIX; segundo, o estudo
de Michel Foucault sobre o processo através do qual ocorreram, entre os séculos
XVI e XVIII na Europa, as transições dos Estados subordinados à teoria jurídica
do soberano para aqueles guiados pelas teorias da arte de governar. Cf. Revel
(1990) e Foucault (1982: 277-293).
6 Para
um estudo sobre o processo de formação e especialização científica de Manuel
Ferreira da Câmara no contexto de renovação do governo de D. Maria I, cf.
Varela (2007: vol. 12, n. 23); para a atuação de Ferreira da Câmara em seus
cerca de 15 anos de governo sobre o Distrito Diamantino, cf. Revista
do Archivo Público Mineiro, jan. a jun. de
1902:13-21.
7 Desde
fins do século XVIII a sociedade europeia passou a viver transformações
permanentes, fazendo com que a vigilância da vida do pobre deixasse de ser
efetuada apenas por patrões e educadores. Já nas primeiras décadas do século
XIX as aglomerações urbanas, os bairros operários de Londres, Manchester e as
regiões industriais da França, bem como as casas dos trabalhadores e o ambiente
das fábricas, começaram a suscitar preocupações sistemáticas de médicos,
filantropos e jornalistas. Diante disso, por exemplo, instituiu-se
progressivamente a redefinição do espaço da cidade, com base na sua
problematização a partir da chamada questão urbana.
8 A
partir da segunda metade do século XVIII o olfato, a percepção auditiva e o
olhar passaram a compor de forma decisiva (ao lado da questão urbana e da Ideia
Sanitária) um quadro em que a vigilância era um instrumento decisivo de
dominação burguesa (Corbin, 1989); para entender a questão do refinamento das
práticas sociais como um componente básico das representações dos viajantes
estrangeiros, foi bastante esclarecedora a leitura do livro de Ribeiro (1983).
9 Os
procedimentos teóricos e metodológicos adotados por Peter Burke para analisar a
linguagem alegórica utilizada na construção da imagem pública do rei Luís XIV
foram importantes para o entendimento das questões aqui analisadas. Cf. Burke,
1994: 27-49.
10 Os
pares Peri e Cecília e Martim e Iracema dos romances O
Guarani e Iracema de
José de Alencar constituem-se em discursos fundadores da identidade nacional,
revestidos de um conteúdo mítico redentor da colonização portuguesa em relação
ao Brasil. Para análise e reflexão sobre a desconstrução de tais discursos, cf.
Ribeiro, "Iracema ou a fundação do Brasil" (1998: 405-413).
11 As
informações sobre a reação da população mineira à devassa e à execução de
Tiradentes, bem como os depoimentos colhidos pelo viajante Richard Burton,
encontram-se em Carvalho (1990: 58-59).
12 Posteriormente,
em texto premiado em 1847 pelo IHGB, von Martius defendeu a ideia segundo a
qual o historiador deveria mostrar que a missão do Brasil era realizar a mescla
das três raças (branco, índio e negro). Mas na defesa desse argumento o negro
acabava recebendo muito pouca atenção do autor, fruto da visão que tinha do
elemento negro como fator impeditivo do processo de civilização. Cf. Guimarães
(1988).
13 Sobre
o conceito rousseauniano de perfectibilidade, cf. esclarecimentos e comentários
de Schwarcz (1993: 44).
14 Papageno,
o homem-papagaio, personagem de A flauta mágica de
Mozart, e Pulcinella, uma figura de teatro popular, que nas pinturas de
Giandomenico Tiepolo traduzem o mundo arruinado da aristocracia europeia do
século XVIII, são variações das significações míticas do arlequim.
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Artigo recebido em 2
de fevereiro e aprovado para publicação em 6 de setembro de 2012.
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