ISSN
0103-8427 Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011
Viajantes e Naturalistas do século XIX: A reconstrução do antigo
Distrito
Diamantino na Literatura de Viagem
Fabrício Antonio Lopes1, Alcione Rodrigues Milagres1, Danielle Piuzana2, Marcelino Santos de Morais2
RESUMO
O município de Diamantina apresenta uma rara possibilidade de
investigar diversos aspectos da
vida cotidiana cuja ocupação remonta no mínimo ao século XVII.
Isso se justifica pela região ter
sido intensamente descrita, reescrita e interpretada por Viajantes
e/ou naturalistas que vieram ao
Brasil atraídos, principalmente, pelas jazidas minerais. Apesar do
foco em minerais preciosos esses viajantes e/ou naturalistas descreveram em
seus cadernos de campo (que posteriormente vieram a se tornar livros) aspectos
de cunho biológico, antropológico, mineralógico, sociológico, geográfico e geológico
do Brasil oitocentista. Essas descrições de importância interdisciplinar vieram
a contribuir com a historiografia brasileira e permite o resgate geográfico,
histórico e cultural de uma região que foi economicamente importante para o
Brasil e que atualmente seu principal centro colonial é considerado Patrimônio
Cultural da Humanidade. Este trabalho enfatiza no conceito da paisagem embasado
pela descrição e compreensão dos processos históricos do uso e ocupação do solo.
A representação cartográfica dos caminhos feitos pelos viajantes contribui com
informações físicas, sociais e histórico-culturais possibilitando uma melhor
localização dos principais pontos naturais e históricos citados nas obras, o
que pode gerar um renascimento do sentimento de pertencimento das comunidades,
principalmente as rurais, ao espaço que hoje habitam.
Palavras chave: Naturalistas,
Viajantes, Cartografia, Paisagem e Territorialidade.
Travelers and Naturalists of the 19th century: The reconstruction of the
Old
Diamantino District in the literature of travels
ABSTRACT
The municipal district of Diamantina presents a unusual
opportunity to investigate aspects of the
daily life whose occupation remounts at least the XVIIth century. That is justified for
that area was
described intensely, rewritten and interpreted by travel
naturalists that came to Brazil mainly
attracted for the mineral beds. Despite the focus on precious
minerals, they described in field
notebooks (which became books later) aspects of biology,
anthropology, mineralogy, sociology,
geography and geology issues of the Brazilian nineteenth-century.
Those interdisciplinary
descriptions came to add with the Brazilian historiography and it
allows to make geographical,
historical and cultural rescue of an area that was economically
significant to Brazil and nowadays
its principal colonial village is considered Unesco World Heritage
site. This work emphasizes in the
concept of the landscape based on description and understanding of
the historical processes of the use and occupation of this area. The
cartographic representation of the roads done by the travelers it contributes
with information physical, social and historical-cultural making possible a
better location of the main natural and historical points mentioned in the
works, which can generate a renaissance of the belonging feeling of the
communities, mainly the rural ones, to the space that today inhabit.
Key words: Naturalists, Travels,
Cartography, Landscape and Territoriality
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0103-8427 Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011
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1. INTRODUÇÃO
No
início do século XIX os europeus controlavam 35% das terras habitáveis do planeta
e cem anos mais tarde, em 1914, passaram a controlar 84% dessa área (AMORIM
FILHO, 2008). Observa-se nesta afirmação o quanto foram importantes as expedições
dos viajantes e naturalistas durante todo século XIX para expansão do conhecimento
do ecúmeno, pois, apesar de ter a posse de colônias, as metrópoles europeias
não detinham o conhecimento necessário para explorar seus bens naturais de
forma que contribuíssem com sua economia e industrialização. Para isso, foram
implantados departamentos e laboratórios de botânica, zoologia, geografia,
etnologia, literatura e geologia nas principais universidades europeias, e
posteriormente, a partir de 1821, foram criadas diversas sociedades geográficas
que patrocinavam as expedições e viagens de exploração (TABELA 1). Ao final das
expedições, os viajantes deviam apresentar seus resultados, relatos orais e
relatórios escritos nos eventos essas sociedades. Todo conhecimento acumulado
constituiu acervo bastante rico que contribuiu para executar interesses da
metrópole sobre a colônia, conforme Amorim Filho (2008):
Neste
sentido, o século XIX parece ser o apogeu de todo tipo de expedições para o melhor
conhecimento do mundo. Além disso, é certamente o momento histórico de maior prestígio
para a já antiga atividade geográfica, que atinge o status de disciplina
acadêmica, status este que, a partir da Europa, se generaliza rapidamente por
quase todo mundo
(AMORIM
FILHO, 2008, p. 110).
Muitos foram os
viajantes/naturalistas estrangeiros, financiados pelas sociedades de geografia,
que estiveram no Brasil no século XIX por objetivos distintos e que
contribuíram, através de seus relatos, para a produção científica da época. Tal
fato se deu uma vez que não existiam estudos profundados das riquezas naturais,
sociais e econômicas da colônia portuguesa. Na Tabela 2 encontram-se dados sobre
estes viajantes/naturalistas em ordem cronológica de visitas efetuadas no
Brasil, segundo Martins (2007). Parte do incentivo à vinda desses pesquisadores
foi a mudança da família real, em 1808, para as terras Brasilis: Para
o Estado português, o conhecimento pormenorizado da colônia era vital para o empreendimento
das reformas necessárias à adaptação do sistema. O domínio destas informações
consistia, antes de mais nada, expressão de seu poder. À maior centralização do
poder monárquico, concretizada a partir de Pombal, correspondia a crescente
necessidade de apreensão mais exata do Reino e da Colônia: conhecer para poder
decidir (FURTADO, 1994, p.15).
A área deste estudo encontra-se no município de Diamantina,
localizado no Estado de Minas Gerais e apresenta uma espetacular possibilidade
de investigar diferentes aspectos da vida cotidiana de uma região que ainda são
conduzidos por uma herança cultural que remonta, no mínimo, ao início do século
XVIII. A descoberta de diamantes na região de Diamantina data de 1714, tendo
sido reconhecida pela Coroa Portuguesa em 1730. Nesta mesma década, para
garantir um eficaz sistema de extração da gema, o governo enviou especialistas
para analisar, controlar e demarcar as terras do distrito minerário, denominado
Distrito Diamantino, o qual abrangeu uma área maior do que ao atual limite
municipal Para a região deslocaram-se principalmente paulistas, portugueses e
negros, ao lado de outros estrangeiros em número menor. Nas palavras de Couto
(1954) “O ouro passou a ser satélite do diamante. A terra desvirginada mostra,
no seu leito recamado de ouro, a pedra que fascina e encanta. Enche-se o
distrito diamantino de aventureiros, beleguins e tropas”. A formação
territorial promovida pela exploração do diamante deixou marcas nas diversas
paisagens desta região, marcas essas que se fundaram nesse sincretismo
cultural. Desse fato resultou uma estratificação étnica que, aliada às questões
sociopolíticas e às condições do meio ambiente físico, definiram a originalidade
da paisagem do século XVIII não somente na região do Tijuco, mas em toda região
do Alto Jequitinhonha e tudo isso foi reconhecido e descrito pelos viajantes/naturalistas
cujas obras estudadas nesta pesquisa, permitem fazer um resgate histórico cultural
de uma região que foi economicamente importante para o Brasil e hoje, seu
principal centro histórico (Diamantina) é considerado patrimônio da humanidade.
Há de se relevar que muitos escritores defendem a ideia de que estas obras
carregam um preconceito sobre a população brasileira já que no contexto
histórico, o Brasil estava por civilizar e o europeu por se considerar uma raça
superior teria as condições necessárias para dar o refinamento cultural ao
brasileiro: Mas essas narrativas precisam ser
lidas com cuidado porque carregam uma marca de determinados preconceitos
europeus. A ideia da superioridade do complexo cultural europeu transparece nas
opiniões dos viajantes, a miúde negativas, sobre as gentes do Brasil. Opiniões
e comentários maledicentes que estavam associados às concepções em voga sobre a
inferioridade das raças de cor e de seus descendentes (MARTINS, 2007, p.66). Entretanto, o presente trabalho tenta ressaltar não o olhar do “colonizador”,
mas sim a riqueza de detalhes envoltos nos aspectos geológicos, geográficos e
biológicos, que são fatores a ser utilizados neste estudo da paisagem.
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0103-8427 Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011
LIMITES DO DISTRITO DIAMANTINO NO SÉCULO XVIII
Figura 1 - ISSN 0103-8427
Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011
Tabela 1 – Lista das
sociedades de Geografia criadas no século XIX.
Fonte:
Site da Société de Géographie de Paris, 2008 apud Amorim Filho, 2008 p.111.
1.2. OBJETIVOS DO TRABALHO
O objetivo geral da pesquisa foi à descrição ambiental de alguns
dos caminhos feitos pelos viajantes que estiveram no antigo Distrito Diamantino
no século XIX, focando na ocupação histórica e relatos sobre a paisagem de trechos
como Diamantina – Guinda – Sopa - São João da Chapada e Diamantina – Extração.
Entre os objetivos específicos podemos citar: Elaboração de um contexto
historiográfico regional, apoiado em fontes primárias; Produção de documentação cartográfica com a localização e inserção
dos marcos geográficos na paisagem e caracterização fisiográfica dos caminhos percorridos
ao longo das jazidas minerais exploradas no passado; Criação de um acervo fotográfico destas rotas relacionado ao mapa;
Descrição e avaliação das alterações na paisagem promovida pela
ocupação humana e pela mineração.
2. MATERIAIS E MÉTODOS
2.1. LOCALIZAÇÃO DA ÁREA DA PESQUISA E CARACTERIZAÇÃO
FISIOGRÁFICA.
O antigo Distrito Diamantino encontra se na porção meridional da
Serra do Espinhaço, onde as paisagens se apresentam de maneira singular do
ponto de vista geológico e geomorfológico, devido à especificidade dos agentes
e processos que foram responsáveis por sua formação. Sua toponímia remonta ao
Barão de Eschwege, um importante engenheiro de minas e geólogo com enfoque em
mineralogia, que veio ao Brasil na segunda década do século XIX (Tabela 2) com
o objetivo de observar, obter informações e tentar aplicar as técnicas de extração
do ouro já existentes na Europa para aumentar a arrecadação do mesmo. Eschwege fez
muitas observações sobre a geologia brasileira, em uma delas batizou a Serra do
Espinhaço:
Uma
dessas principais cadeias montanhosas, chamada em alguns lugares de Serra da Mantiqueira,
encerra os pontos mais altos do Brasil, tais como o Pico do Itacolumi perto de Vila
Rica, a Serra do Caraça junto a Catas Altas e o majestoso Pico do Itambé, perto
da Vila do Príncipe, e atravessa, pelo norte, as províncias de Minas Gerais e
da Bahia seguindo até Pernambuco e para o sul, a de São Paulo até o Rio Grande
do Sul. A ela denominei Serra do Espinhaço (“Rückenknochengebirge”), não só
porque forma a cordilheira mais alta, mas, além disso, é notável, especialmente
para o naturalista, pois forma um importante divisor não somente sob o ponto de
vista geognóstico, mas também é de maior importância pelos aspectos da fauna e
da flora. [...] As regiões ao leste desta cadeia, até o
mar, são cobertas por matas das mais exuberantes. O lado oeste
forma um terreno ondulado e apresenta morros despidos e paisagens abertas,
revestidas de capim e de árvores retorcidas, ou os campos cujos vales encerram
vegetação espessa apenas esporadicamente. O botânico encontra, nas matas virgens,
plantas completamente diferentes daquelas dos campos e o zoólogo acha uma outra
fauna, especialmente de aves, tão logo passe das matas, pela Serra do Espinhaço,
para os campos. (ESCHWEGE,2005, p. 99).
Tabela 2 – Viajantes que
estiveram no Brasil no século XIX.
Fonte:
Modificado de Ribeiro, 2005, p.365.
A
Serra é uma região com cerca de 1200 km de extensão na direção aproximadamente norte-sul,
abrangendo áreas dos estados de Minas Gerais e Bahia. Sua porção meridional estende-se
por cerca de 300 km localizada integralmente em território mineiro e constituindo
um dos principais marcos geográficos deste estado.
Viajantes Nacionalidade Formação/Profissão Época de passagem no
Brasil
John
Mawe Inglês Comerciante 1809-1810
G.W.
Freireys Russo Naturalista 1814-1815
Barão
de Eschwege Alemão Mineralogista 1811 -1821
Auguste
de Saint-Hilaire Francês Botânico 1817 - 1822
John
Luccock Inglês Comerciante 1817 - 1818
K.
Martius e J. Spix Alemães Zoólogo/Botânico 1818
Johann
E. Pohl Austríaco Médico e Botânico 1818, 1820 - 1821
Barão
de Langsdorff Alemão Naturalista 1825
Alcide
D' Orbigny Francês Naturalista 1833 - 1834
Charle
J.F. Bunbury Inglês Naturalista 1834-1835
George
Gardner Inglês Médico naturalista 1840
Johann
Jakob Von Tschudi Suíço Naturalista 1858
Louis
Agassiz Americano Geólogo 1864 - 1866
Richard
Francis Burton Inglês Geógrafo/Diplomata 1867
James
Wells Inglês Engenheiro 1875
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0103-8427 Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011
Esta região tem sido objeto de estudos de cunho geológico pelo
menos desde o início do século XVIII. O acervo bibliográfico existente sobre a
região, decorrente da descoberta dos depósitos diamantíferos no século XVIII, é
vasto e distribuído em diversas publicações. O relevo da serra é marcadamente agressivo
com altitude geralmente superior a 1000 m, alcançando um máximo de 2002 m de altitude
no Pico do Itambé, localizado a cerca de 30 km a sudeste de Diamantina. Tal
elevação foi um importante marco geográfico natural na orientação das viagens
entre o Distrito Diamantino e demais localidades. Topograficamente, discute-se
sua denominação, pois por ser considerada um vasto conjunto de terras altas ao
invés de ser chamada de serra, deveria levar o nome de Planalto de Diamantina
(ABREU, 1982) e mais tardiamente Planalto Meridional do Espinhaço (SAADI, 1995),
o que corrobora em sua importância como área de passagem e não como empecilho a
ocupação interiorana. Este planalto compreende um divisor de três grandes
bacias hidrográficas, que são as bacias dos rios Jequitinhonha, São Francisco e
Doce. A paisagem gerada pelo entalhamento das rochas predominantemente quartzíticas
da Serra do Espinhaço, com a formação de elevações e espigões de formas diversas,
é de extrema beleza, a qual sempre presente nos relatos e descrições dos
viajantes. O quadro final é dado pelo contraste
entre os rochedos e as superfícies mais baixas, que geralmente são
cobertas por vegetação singela. Estas superfícies constituem extensos pediplanos
onde existem intercalações de litologias mais susceptíveis à decomposição. A
presença do diamante, mineral que possibilitou a constituição do antigo
Distrito Diamantino, ainda é cenário de discussões sobre sua origem. Consenso é
de que as unidades litológicas diamantíferas encontram-se na Formação
Sopa-Brumadinho, uma das unidades basais do Supergrupo Espinhaço de vasta
ocorrência na Folha Diamantina.
O procedimento metodológico
ocorreu em etapas distintas e de forma qualitativa. Primeiramente foi realizado
estudo detalhado dos caminhos percorridos pelos viajantes e naturalistas. Além
disso, foi realizado levantamento de dados fisiográficos que caracterizam a
Serra do Espinhaço Meridional. Uma vez realizada a primeira etapa, passou-se à
identificação e espacialização de informações contidas nos relatos para base cartográfica.
Foi utilizada a carta topográfica de Diamantina (Folha SE-23-Z-A-III, Escala 1:100.000).
Tal procedimento permitiu a espacialização de possíveis rotas percorridas no século
XIX por meio de comparação entre marcos geográficos descritos pelos viajantes e
marcos geográficos representados na carta topográfica tais como nomes de rios,
córregos, ribeirões, regiões, atuais distritos, além de outros atributos
geográficos. Esta etapa subsidiou as atividades de campo. Os trabalhos de campo
foram realizados da sede municipal de Diamantina em direção aos distritos de
Extração e Capão Mata-Mata e Guinda, Sopa e São João da Chapada.
Em campo buscou-se uma
comparação da paisagem e ocupação do solo descritos nos diversos momentos
históricos do século XIX e nos dias atuais, o que possibilitou identificar elementos
na paisagem que permitiram entender os fatores que condicionaram a modificação
do espaço neste intervalo temporal. As coordenadas geográficas de marcos geográficos
e históricos impressos na paisagem e relatados nas obras dos viajantes foram obtidos
pelo sistema GPS e tratadas nos softwares
ArcGis, TrackMaker e Corel Draw para reconstrução
cartográfica dos caminhos percorridos e que serviram de base para as interpretações
deste trabalho.
3. RESULTADOS E DISCUSSÕES
Na primeira campanha de campo, foi realizado um percurso na parte
oriental da atual cidade Diamantina onde se encontram antigos serviços de
extração de diamantes; os serviços de Curralinho e Mata-Mata. O embasamento teórico
para tal trabalho baseou-se em relatos de dois viajantes, Richard Francis
Burton e Auguste de Saint-Hilaire devido à maior riqueza de detalhes referentes
aos aspectos físicos, econômicos, sociais e culturais do Distrito Diamantino
presentes em suas obras. As referidas obras possuem vastas informações
presentes em várias áreas do conhecimento acerca da região estudada. Mais precisamente
na porção oriental do Distrito Diamantino, no percurso para a região de Curralinho
e Capão do Mata-Mata Auguste de Saint-Hilaire e Richard Burton descreveram toda
composição paisagística dos locais por onde passaram – vegetação, composição litológica
e rios – dos quais a maior parte das designações de marcos geográficos perduram
até hoje, como observado na carta topográfica de Diamantina, dentre eles: o
córrego Junta-Junta , o Ribeirão do Inferno, o Pico do Itambé, a Montanha Maravilha.
Burton (1983) cita: “Em torno de nós, viam-se habituais afloramentos de
itacolomito quartzoso...” (p. 100). A denominação para o itacolomito quartzoso
citado é o quartzito (com mais ferro em sua composição), rocha predominante da
Serra do Espinhaço. No caminho para o Capão Mata-Mata, Burton (1983) descreve a
vegetação denominada por ele de “tabuleiro”, uma mata fechada em um local de
difícil acesso, este caminho foi inferido e representado mapa da, por conter características
como descritas pelo viajante. Em trabalho de campo, notou-se que a paisagem descrita
pelo naturalista ainda apresenta-se no mesmo contexto do Século XIX, ou seja,
as matas presentes no relevo tabular, enclaves de mata Atlântica, encontram-se
quase que intactas na paisagem atual dificultando ainda a acessibilidade para
essa região. Ao passar pelo Ribeirão do Inferno, em 1817, Saint-Hilaire
descreve que o leito deste rio foi posto a seco e que suas águas foram desviadas
para um canal artificial por causa do garimpo: Ao
fundo do Vale corre um regato chamado Ribeirão do Inferno; seu leito foi posto
a seco, sendo suas águas desviadas para um canal artificial, muito acima do
leito verdadeiro; grandes pedras que os trabalhadores haviam deslocado com
dificuldade jaziam esparças aqui e acolá; enfim, de todos os lados viam-se montes
de terra e montanhas de cascalho (SAINT-HILAIRE, 2004, p. 36).
Ainda sobre o Ribeirão do Inferno, Richard Burton, em 1867, relata
que: antes esse rio era muito difícil de atravessar e por
isso lhe foi dado o nome de Inferno: [...] atravessamos, em uma boa ponte, o
ribeirão, chamado pelos antigos viajantes de Inferno, por causa das
dificuldades que oferecia (BURTON, 1976, p. 100). Hodiernamente, o referido trecho do ribeirão ainda guarda marcas
das atividades minerarias do Século XIX, porém tal constatação foi realizada
com um olhar extremamente aguçado, pois evidências de uso e ocupação às suas
margens mostram através de edificações tanto do Século XIX como do Século XX a
intensiva exploração mineral que teve como consequência o seu assoreamento. O
que se pensa como atual processo de assoreamento do Ribeirão do Inferno na
verdade remonta do Século XIX, ou até mesmo antes. Portanto, todas as mazelas
trazidas pelo
assoreamento
não são específicas da mineração contemporânea. Fato este se comprova na
leitura
dos dois viajantes quando da descrição de suas passagens pelo ribeirão.
A segunda campanha de campo foi realizada no caminho
Diamantina-São João da Chapada, passando por Guinda e Sopa e para este trabalho, focalizou-se na obra de quatro
viajantes: John Mawe, Auguste de Saint-Hilaire, Johann Jakob Von Tschudi e
Richard Burton. Da mesma forma que no caminho para Curralinho (atual Extração)
e Capão Mata Mata, observa-se que no percurso entre Diamantina e São João da
Chapada o nome de muitos dos marcos geográficos citados nas obras perduram até
hoje tais como Tromba D’Anta, Córrego Morrinhos, Rio Caldeirão e Morro Redondo
identificados. Entretanto, há locais cujos nomes são designados de forma diferente
entre os viajantes, como o caso de São João da Chapada, conhecida por de Aldeia
de Chapada nos relatos de Saint-Hilaire, São João na obra de Tschudi e São João
do Descoberto nas descrições de Burton. O pico do Itambé, designado “Espigão Mestre”
por Burton é avistado desse local e descrito como o grande divisor de águas ao norte
para o Rio Jequitinhonha e ao Sul para o Rio das Velhas. Era, ainda, um
atributo natural de orientação para os viajantes como pode ser observado. Tendo
por base os relatos, observa-se que a região, às vistas dos naturalistas, não
era mais economicamente importante quanto à extração dos diamantes;
Saint-Hilaire, em 1817, já descrevia sua escassez: “[...] Os regatos que correm
por Chapada deram outrora muitos
diamantes, mas agora a maioria está esgotada [...]”
(SAINT-HILAIRE, 1974, p.24).
Provavelmente,
Saint-Hilaire, Burton e Tschudi visitaram o local por causa dos serviços de
diamantes de Rio Pardo e Córrego Novo, localizados à Oeste de São João da
Chapada e importantes pelo fato de terem fornecido os diamantes mais preciosos
do Brasil, conforme o viajante John Mawe descreveu, em 1808, ao passar pela
região:
Embora lamacento e pouco considerável, o Rio Pardo produziu tantas
pedras belíssimas quanto qualquer outro rio do distrito. Nele se encontram os
diamantes verde-azulados, antigamente tão apreciados pelos holandeses. As
pedras desse córrego são ainda hoje tidas como as mais preciosas do Brasil
(MAWE, 1978, p. 160).
Durante o trajeto (Diamantina – São João da Chapada), observam-se
áreas que permanecem quase intactas no que se refere às “longas planícies” e
sua composição vegetal. Locais de ocorrência dos metaconglomerados diamantíferos,
vertentes e córregos próximos a estas rochas sofreram amplas interferências antrópicas
e esse quadro ocorre devido ao uso de máquinas como bombas de água, dragas e dinamites.
Quanto ao garimpo artesanal, não se percebe impactos significativos ao ambiente
natural.
4. CONCLUSÕES
Uma primeira consideração é que no decorrer desta pesquisa
embasou-se em uma linha de pensamento da geografia denominada geografia
humanista-cultural, pois trata das percepções, representações e cognições do ambiente
geográfico e de seus “lugares e paisagens valorizados” (AMORIM FILHO,2008).
Neste sentido, a percepção de um viajante naturalista do século XIX é bastante diferente
daquela que se dispõe hoje, entretanto tal comparação é a melhor forma de
analisar a paisagem em dois momentos distintos (século XIX e século XXI); uma
vez que seus estes relatos consistem em documentos de fácil acesso e
irrestritos, diferente de diversos documentos historiográficos do poder público
que não se encontram disponíveis para esta região. A representação cartográfica
dos caminhos feitos pelos viajantes contribui com a melhoria do conhecimento
sobre a realidade do antigo Distrito Diamantino, uma vez que a identificação em
mapas atuais de elementos descritos no século XIX permitiu que fossem seguidos
os itinerários dos naturalistas; ademais, auxiliou na contextualização das
mudanças da paisagem e territorialidade vinculadas às informações geológicas,
hídricas, sociais e histórico-culturais que possibilitam uma melhor localização
dos principais pontos naturais e históricos retratados nas obras, o que pode
gerar um renascimento do sentimento de pertencimento das comunidades ao espaço
que hoje habitam. Foi evidenciado que desde o século XIX a paisagem vem
sofrendo constantes mudanças devido a fatores econômicos. Tais modificações são
principalmente causadas pelo extrativismo mineral, que levou à necessidade de
intervenção de órgãos ambientais à proibição da maior parte de garimpos e
minerações de diamante na região, imposta legalmente através da Constituição
Federal de 1988 e da legislação ambiental que atuou com a ajuda da imposição de
Áreas de Proteção Ambiental – APA da Águas Vertentes e da Reserva da Biosfera
da Serra do Espinhaço (SATHLER, 2008).
Nota-se a necessidade de estudos
aprofundados dessas obras que podem fazer um resgate histórico de um patrimônio
extremamente importante para história ambiental de Minas Gerais, sendo esses
relatos, importantes fontes para o entendimento da evolução da paisagem. Quanto
às fontes etnográficas encontradas na forma de desenhos presentes em várias das
obras analisadas, entende-se que são de grande importância nestes estudos,
pois, apresentam a forma como os viajantes percebiam a paisagem. Essa atividade,
realizada no ato do trabalho de campo, era bastante valorizada dentro da geografia
e áreas afins durante os anos oitocentistas, hoje praticamente deixada de lado.
Entretanto, também é preciso ler essas imagens com cuidado, pois apesar de nos
fornecer dados primários, podem apresentar erros provenientes do ato de
tradução e (re) edição, o que pode ser um empecilho nas pesquisas relacionadas
ao tema.
AGRADECIMENTOS
A.A.Lopes
e A. R. Milagres agradecem
à
Bolsa de Iniciação Científica da
FAPEMIG/UFVJM.
Os autores agradecem
ainda
ao Rommel Machado, responsável pela
Biblioteca
Professor Reinhardt Pflug da Casa da
Glória,
IGC/UFMG, pelo apoio com as obras
consultadas.
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1-
Bacharéis em Humanidades. e-mail:
fabricioantoniolopes@gmail.com
2-
Professores do Bacharelado em Humanidades da
UFVJM. E-mail:
dpiuzana@yahoo.com.br
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