Realização:
A descoberta de ouro e diamante em Minas Gerais, no
início do século XVIII, provocou uma corrente migratória
sem precedentes na história da colonização brasileira.
A nova população constituiu-se de uma mistura de diferentes
etnias e de indivíduos de origens diversas, vindos
de outras regiões do país ou da Europa, sobretudo de
Portugal, e da África. A sociedade multirracial de Minas
Gerais não apenas polarizou-se em senhores e escravos,
mas também incluiu uma imensa camada intermediária
sem “estrutura social configurada, caracterizando-se
pela fluidez, pela instabilidade, pelo trabalho esporádico,
incerto e aleatório”.9
A primeira estruturação dessa sociedade foi proporcionada
pelas irmandades que apareceram em todos
os arraiais, vilas e cidades da região. Na ausência de ordens
religiosas regulares – proibidas em Minas Gerais pelo
rei Dom João V (1689-1750) –, o poder social, político,
cultural e religioso das associações leigas era mais forte
do que em outras partes do Brasil e de Portugal. O ingresso
em uma dessas irmandades garantia certo status ao
indivíduo. Para a Igreja, elas representavam o apoio
material ao culto e à promoção da religião, já que se
encarregavam da construção de suas capelas e da organização
de algumas cerimônias religiosas, notadamente
a festa do padroeiro. Esse quadro associativo particular
permitiu o aparecimento e o desenvolvimento da música
sacra mineira do século XVIII, de raiz européia.
A música religiosa era produzida, principalmente,
sob encomenda, seja por contrato anual entre as instituições
e um “diretor de música”, seja, mais raramente,
por um acordo na ocasião das comemorações extraordinárias.
O diretor de música atuava, freqüentemente,
em várias funções: compositor, regente, organista,
cantor ou instrumentista. Às vezes, duas ou três dessas
funções eram executadas ao mesmo tempo. Além disso,
o diretor era, muitas vezes, o responsável administrativo
pelo grupo.
Paralelamente, o período assistiu ao desenvolvimento
de uma música inovadora, profana e doméstica –
a modinha e o lundu – que aparentemente não influenciou
a composição sacro-musical setecentista. Foi necessário
esperar por Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913),
Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Francisco Valle
(1869-1906), entre outros, para ver ritmos e temas da
música popular penetrarem na música de concerto.
Da mesma forma, as partituras de música de câmara
estão ausentes da obra conhecida dos compositores
mineiros do século XVIII.
Nenhum documento capaz de esclarecer a data e
o local do nascimento de Lobo de Mesquita foi localizado
até o momento. Acredita-se, contudo, que tenha
nascido na Vila do Príncipe do Serro do Frio, atual Serro
(MG), entre 1740 e 1750.10 Seu nome consta registrado
pela primeira vez em um assentamento do livro de
9 SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p.63.
10 O ano de nascimento 1746 foi sugerido por Geraldo Dutra de Moraes sem prova documental. Ver: MORAES, Geraldo Dutra de. Música barroca
mineira; prefácio de Márcio Antônio da Fonseca e Silva. São Paulo: Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo: 1975. 64p.
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pagamento da Câmara do Serro: no dia 26 de dezembro
de 1774 recebeu um pagamento pela música para as
quatro festas anuais dessa vila. O fato de ser ele responsável
por um contrato dessa natureza supõe um mínimo
de experiência. Conclui-se, portanto, que sua idade
deveria estar entre vinte e trinta anos quando firmou o
contrato em questão. É certo, contudo, que Lobo de
Mesquita era mulato, possivelmente filho natural do
português José Lobo de Mesquita e de sua escrava
Joaquina Emerenciana, e que se casou por volta de 1795
com Tomásia Onofre do Lírio. A exemplo de outros
músicos e artistas mineiros, foi proprietário de ao menos
uma escrava, Teresa Ferreira. É possível também que
tenha sido aluno dos padres Manuel da Costa Dantas,
Manuel de Almeida Silva e Miguel Bernardo Moreira,
porém não existe qualquer informação concreta sobre
seus estudos musicais.
Diamantina, na época Arraial do Tejuco, onde
Lobo de Mesquita residiu desde 1783, testemunhou uma
intensa atividade musical durante a segunda metade do
setecentos. Os livros das associações religiosas mencionam
a presença de 31 diretores de música nessa
localidade, entre 1761 e 1837. De 1783/84 a 1798, Lobo de
Mesquita exerceu, em Diamantina, as funções de
professor, organista e compositor. O contrato com o
conselho da Ordem Terceira do Carmo, firmado em
Diamantina em 1789, cita o seu grau de alferes, mas
nenhum outro documento corroborando sua situação
militar foi encontrado.
Sua fase mais criativa como compositor coincidiu
com suas atividades no Serro e em Diamantina. Os autógrafos
conhecidos de suas obras, todos datados, além das
raras cópias que mencionam o ano de suas composições,
dão prova de uma produção situada entre 1778 e 1803.
Em 1798 Lobo de Mesquita passou a residir na
cidade de Vila Rica, atual Ouro Preto, onde permaneceu
por um curto período. Finalmente, transferiu-se para o
Rio de Janeiro, a capital da Colônia, onde, em dezembro
de 1801, assinou um contrato com a Ordem Terceira do
Carmo. Esse documento assinala sua função de organista,
como em Diamantina. No Rio de Janeiro viveu
seus últimos dias, falecendo em 1805.
Toda sua criação consiste de música religiosa,
quase sempre em latim. As únicas exceções são o Padre
Nosso e a Ave Maria do Tercio (CT-MCRF [75]; CT-MIG 14).
É interessante ressaltar, no entanto, a localização, na Casa
de Cultura de Santa Luzia, de duas novas composições de
Lobo de Mesquita aqui publicadas: Congratulamini mihi
(PAMM 02) e Ave Regina cælorum (PAMM 04). A revelação
destas obras demonstra, mais uma vez, a força de
propagação da sua produção e deixa entrever a possibilidade
de localização de outros documentos capazes de
esclarecer as dúvidas de atribuição ainda existentes e
preencher as lacunas das obras incompletas.
O compositor, em grande medida, evita a virtuosidade
instrumental, priorizando a inteligibilidade do
texto. Isso provavelmente está condicionado à liturgia,
mas também é possível que esteja ligado à competência
dos intérpretes disponíveis ou ao próprio desenvolvimento
da prática musical mineira no século XVIII.
Observe-se como sua escrita vocal transforma-se quando
a peça é dedicada a um solista, como é o caso da Antífona
Ave Regina cælorum (CT-MCRF [06]; CT-MIG 05)11 e do
Verso do Responsório Cum transisset (CT-MCRF [38];
CT-MIG 13).12 Nestes dois exemplos, o solo é escrito para
contralto, indicando que o compositor tinha à sua disposição,
em momentos especiais, intérpretes de singular
qualidade. Nas Matinas do Sábado Santo (CT-MCRF
[64]; CT-MIG 18; AMB 11)13 constam freqüentes solos
para cada uma das vozes que, embora menos elaborados
que nas peças para voz solista, levantam a hipótese de o
compositor contar com um grupo homogêneo e de
qualidade para esta ocasião.
A escrita das trompas em geral é austera, quase
percussiva, lembrando os tímpanos da música militar e
o suposto grau de alferes do compositor. Os violinos I e
II tocam freqüentemente em terças ou sextas paralelas
e utilizam, na maior parte do tempo, a primeira posição.
O baixo instrumental é simples, cifrado com um ou dois
números, raramente três, sinalizando ao intérprete
cadências, modulações e acordes incomuns. As cifras,
esparsamente anotadas nos autógrafos, praticamente
desaparecem nas cópias.
O compositor explora freqüentemente a alternância
de texturas vocais para estruturar suas obras: solos,
duos e tutti alinham-se com fluidez característica.
Exemplos marcantes de fineza e beleza incluem a Antífona
Regina coeli lætare (CT-MCRF [01]; CT-MIG 39) e a Lição IV
do Noturno II das Matinas do Sábado Santo (CT-MCRF
[64]; CT-MIG 18; AMB 11).
O cantochão aparece na obra de Lobo de Mesquita
de maneiras distintas. O autógrafo do Ofício, Paixão e
Missa Dominica in Palmis (CT-MCRF [61]; CT-MIG 3a)
inclui incipits monofônicos a serem entoados ao início
11 Edição de André Guerra Cotta em: COTTA, André Guerra (org.). Lobo de Mesquita no Museu da Música de Mariana: homenagem a José
Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746?-1805) no bicentenário de seu falecimento. Mariana, Belo Horizonte: Fundação Cultural e
Educacional da Arquidiocese de Mariana, 2005. p.45-51.
12 Edição de Marcelo Campos Hazan em: COTTA, André Guerra (org.). op. cit., 2005. p.119-122.
13 Edição de André Guerra Cotta em: CASTAGNA, Paulo (coord.). Sábado Santo; coordenação musicológica Paulo Castagna; coordenação
editorial Carlos Alberto Figueiredo; pesquisa, edição e texto André Guerra Cotta, Paulo Castagna, Carlos Alberto Figueiredo. Belo
Horizonte: Fundação Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana, 2002. p.49-151. (Acervo da Música Brasileira / Restauração
e Difusão de Partituras, v.3)
José Joaquim Emerico Lobo de Me squita
do Asperges-me e do Credo.14 A Missa de Quarta-feira de
Cinzas (CT-MCRF 49; CT-MIG 16), por sua vez, inclui
uma interessante alternância de polifonia e cantochão
figurado, enquanto outras obras, como o Terceto
Signatum est (CT-MCRF 71; CT-MIG 42; PAMM 01),
permitem supor o cantochão, pela ausência de um
segmento do texto latino.
Do ponto de vista harmônico, observa-se na
música de Lobo de Mesquita a notável ausência do
acorde invertido da subdominante nas cadências.
Uma das exceções a este procedimento é o expressivo
c.27 da Antífona Regina coeli lætare (CT-MCRF [01];
CT-MIG 39),15 na qual um acorde do IV grau é valorizado
pela sexta que aparece entre os baixos vocal e instrumental.
Outra característica é a freqüente utilização da
nota-pedal no baixo como elemento estrutural para
prolongar a tônica ou a dominante (freqüentemente no
papel de tônica secundária). Essas notas-pedal são
utilizadas de maneiras diversas, seja pela alternância
do acorde perfeito no estado fundamental e do acorde
na segunda inversão (I - IV 6
4 ou V - I 6
4), seja pelo encadeamento
dos três graus fundamentais. O tratamento da
melodia é livre da quadratura, tal como ocorre, por
exemplo, nos cinco compassos iniciais do Asperges-me
na referida Dominica in Palmis (CT-MCRF [61]; CT-MIG
3a).16 Períodos irregulares são também usuais, como é o
caso da introdução em nove compassos do Veni sponsa
Christi aqui editado (CT-MIG 47; PAMM 05).
Outro detalhe interessante de sua escrita é o
tratamento do intervalo de nona. Este intervalo estava
em plena evolução durante o século XVIII e Lobo de
Mesquita utiliza-o com cuidado: a nona menor, empregada
de uma maneira inteiramente melódica,
aparece mais freqüentemente que a nona maior natural,
extremamente rara em sua obra. A nona menor é utilizada
quase sempre como apojatura ou broderie da nota
de dominante. As linhas melódicas determinam e justificam
sua aparição. Outras particularidades harmônicas
como quintas e oitavas paralelas, certos movimentos
surpreendentes das vozes, terças e sétimas
dobradas e acordes incompletos aparecem, ocasionalmente,
na obra do compositor. Tudo isso é, ao mesmo
tempo, causa e conseqüência de um estilo livre, transparente
e despojado.
Maria Inês Guimarães
(Cebramusik, Paris/Uberaba)
BIBLIOGRAFIA
CASTAGNA, Paulo (coord.). Sábado Santo; coordenação musicológica Paulo Castagna; coordenação editorial Carlos Alberto
Figueiredo; pesquisa, edição e texto André Guerra Cotta, Paulo Castagna, Carlos Alberto Figueiredo. Belo Horizonte:
Fundação Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana, 2002. 300p. (Acervo da Música Brasileira / Restauração e
Difusão de Partituras, v.3)
COTTA, André Guerra (org.). Lobo de Mesquita no Museu da Música de Mariana: homenagem a José Joaquim Emerico Lobo de
Mesquita (1746?-1805) no bicentenário de seu falecimento. Mariana, Belo Horizonte: Fundação Cultural e Educacional da
Arquidiocese de Mariana, 2005. 214p.
JUNQUEIRA GUIMARÃES, Maria Inês. O Catálogo temático da obra de Lobo de Mesquita. IV ENCONTRO DE MUSICOLOGIA
HISTÓRICA, Juiz de Fora, 21-23 de julho de 2000. Anais... Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música; Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional, 2002. p.173-190.
__________. L’oeuvre de Lobo de Mesquita, compositeur brésilien (1746?-1805): contexte historique, analyse, discographie, catalogue
thématique, restitution. Paris: Presses Universitaires du Septentrion, 1996. 659p.
LOBO DE MESQUITA, José Joaquim Emerico. Dominica in Palmis (1782). Office, Passion et Messe pour le Dimanche de Rameaux.
Lyon: Editions A Coeur Joie, 1999. 140p.
SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. 237p.
14 Edição de Maria Inês Junqueira Guimarães. LOBO DE MESQUITA, José Joaquim Emerico. Dominica in Palmis (1782). O ce, Passion et
Messe pour le Dimanche de Rameaux. Lyon: Editions A Coeur Joie, 1999. p.5, 96.
15 Edição de André Guerra Cotta em: COTTA, André Guerra (org.). op. cit., 2005. p.53-65.
16 LOBO DE MESQUITA, José Joaquim Emerico. op. cit., 1999. p.104-105.
Realização: Governo de Minas - Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais
FAPEMIG - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
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