A África no Serro Frio – Vissungos: Uma
prática social em extinção
Lúcia Valéria do Nascimento
1.
INTRODUÇÃO
Sendo a língua o
elemento mais importante da cultura de uma comunidade, quando ela morre,
perde-se o saber específico daquela cultura.
Assim, tem-se constituído um dos maiores desafios da Lingüística –
ciência que estuda as línguas, a linguagem humana – tentar salvar as línguas
que estão em extinção em várias partes do planeta.
“É óbvio que temos de repensar seriamente nossas
prioridades para que a lingüística não entre na história como a única ciência
que assistiu despreocupadamente ao desaparecimento de 90% do campo a que se
dedica.” Michael Krauss, The World Language in Crisis (1992). In: GIBBS (2002)
Há várias tentativas de descobrir quais línguas podem
ser salvas e quais devem ser documentadas antes de desaparecerem. Foram
preocupações como essas que deram origem à investigação da qual resulta o
presente trabalho.
Era voz comum que em algumas localidades próximas a
Diamantina, MG, as pessoas se comunicavam em dialeto africano. Isto veio
motivar a realização desta pesquisa, pela qual se constatou o quase
desaparecimento do referido dialeto.
Este trabalho vem documentar e expor a situação dos
remanescentes de língua africana na região de Diamantina, MG.
O processo de desaparecimento da língua africana nesta
região está diretamente ligado à morte dos vissungos – cantos ritualísticos
produzidos por negros descendentes de escravos – que por sua vez, existiram
enquanto houve contexto para a realização das práticas sociais em que eram
envolvidos.
Esta pesquisa visa trabalhar os vissungos do ponto de
vista de prática social e morte de língua. Para tal foi feita uma análise
social, antropológica, um paralelo desta análise com o estudo teórico sobre
morte de língua e um estudo sobre as raízes lingüísticas dos vissungos. Não se pretendeu
aqui, fazer uma análise dos vissungos do ponto de vista lingüístico-estrutural.
Nosso objetivo é, portanto, estudar a descrição do
gênero vissungo e analisar o seu desaparecimento, na perspectiva da teoria
sobre morte de língua.
Na produção científico-literária sobre o assunto,
destaca-se a obra de Machado Filho O
negro e o garimpo em
Minas Gerais editada pela primeira vez em 1943, pelo
valor histórico, riqueza de dados e precisão da documentação tanto na letra
quanto na música, através dos pentagramas. Nesta obra são documentados os
vissungos cantados na região de Quartel do Indaiá/São João da Chapada, MG, numa
pesquisa realizada da década de 30.
Para suporte teórico, tomaremos como referência,
principalmente, os trabalhos de Ingedore Koch (2002) sobre texto e contexto, os
trabalhos de Dell Hymes (1977) sobre abordagem etnográfica na sociolingüística,
estudando a interação da língua e vida social, e os trabalhos de Nancy Dorian
(1999, 2001, [200-]) sobre a obsolescência da língua, trabalho de salvamento,
últimos falantes e morte de língua.
Como os fenômenos sociolingüísticos não são fáceis de
serem explicados em sua totalidade pelas teorias, o desenvolvimento desta
pesquisa exigiu que fossem feitas várias viagens a campo para realização de
entrevistas, observação da vida em comunidade e para fazer as gravações dos
vissungos. Leituras sobre a história local, com o objetivo de esboçar um quadro
sobre a identidade do cantador de vissungo, foram também de extrema
importância.
Acervo Zé da Sé.
2. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No projeto de dissertação Estudo Fonológico dos Vissungos de São João da Chapada, apresentado
à POSLIN (FALE/UFMG) em março do ano de 2001, propusemos fazer um estudo
comparativo entre os vissungos – cantos ritualísticos produzidos por negros
descendentes de escravos – colhidos por Machado Filho e publicados em 1943 no
livro O negro e o garimpo em Minas Gerais ,
na região de São João da Chapada/Quartel do Indaiá, e os vissungos coligidos
pela pesquisadora nos anos de 2001/2002, dentro de uma perspectiva fonológica.
Esse projeto previa a coleta de dados na mesma região onde Machado Filho fez
sua investigação. Da comparação dos dados colhidos por Machado Filho (1985), e
dos dados coletados pela pesquisadora, constatou-se que a proposta inicial de
um estudo fonológico apresentada no projeto de dissertação não deveria ser
realizada, visto os vissungos remanescentes naquela região serem em número
muito reduzido e com uma acentuada alteração. Esta constatação conduziu a uma
nova proposta: a urgência de registrar tais vissungos e um estudo mais
detalhado sobre sua natureza e função.
Contudo, a hipótese inicial do projeto poderá ser
objeto de estudos posteriores, caso se comprove a existência de um corpus que justifique uma análise
fonológica comparativa dos vissungos. Entretanto, constatamos que apenas dois
cantadores identificados em toda a localidade são os únicos a reter na memória
os cantos, tornando-se necessário partir para o registro dos mesmos em sua
forma atual e trabalhar sobre uma perspectiva da lingüística textual, aliada a
uma necessidade de abordar os vissungos na perspectiva da morte de língua.
A presente justificativa tem como objetivo demonstrar
a alteração da proposta inicial de uma análise fonológica para uma análise em
lingüística textual. Essa alteração visa garantir o registro do corpus coletado em 2001/2002, analisar
os vissungos como práticas sociais e as possíveis razões que levaram ao
desaparecimento dessas mesmas práticas.
Machado Filho coletou 65 vissungos na década de 30 e a pesquisadora encontrou,
na mesma região, apenas 14 vissungos guardados na memória dos cantadores.
Sendo a pesquisa conduzida para o novo rumo,
realizou-se uma segunda coleta de vissungos, partindo-se para o registro dos
dados e, conseqüentemente, para uma análise dos seus usos e funções dentro das
práticas ritualísticas. A nova coleta se deu no povoado de Ausente, próximo ao
distrito de Milho Verde, pertencente ao município do Serro (MG). Também nesta
localidade foram encontrados apenas dois cantadores, dos quais somente um se
mostrou receptivo à pesquisa. Os
vissungos encontrados em Ausente diferem em grande parte dos cantados em
Quartel do Indaiá quanto às letras das músicas, mas não diferem quanto ao uso e
às funções.
Os povoados de
Ausente/Milho Verde e Quartel do Indaiá/São João da Chapada faziam parte da
antiga Comarca do Serro-Frio, existente em Minas Gerais nos
séculos XVII e XVIII. Dentro da Comarca Serro-Frio foi demarcado o Distrito
Diamantino, que era maior que o Arraial do Tijuco. Quando este arraial se estabeleceu
como produtor de ouro e, principalmente, de diamante, o distrito foi demarcado.
O arraial era a sede do distrito, da demarcação.
Os vissungos, que
estão quase extintos, devido a questões de ordem social e ao desaparecimento
dos contextos que os amparavam, foram encontrados em Quartel do Indaiá – São
João da Chapada (Diamantina) e Ausente – Milho Verde (Serro).
Os vissungos que eram cantados durante
práticas sociais, são de herança
africana e foram incorporados ao cotidiano da escravaria, em que eram entoados
para aliviar os momentos extremamente árduos da mineração e dos funerais. Essas
práticas sociais se caracterizam pela sistematização dos cantos que, além de
terem uma forma definida, eram praticados de uma maneira ritualística, com sua
execução sempre de acordo com o evento a que se destinava. Os cantos encontrados hoje, apesar de serem
diferentes nas duas localidades em estudo, remetem às mesmas práticas, a saber:
cantos de trabalho, de multa e de enterro. Os cantos de trabalho são de conhecimento
dos cantadores do Quartel do Indaiá. Eles se lembram de cantá-los durante os
trabalhos de mineração quando era preciso carregar a roda para secar a água. Os
cantos de multa eram entoados quando algum “freguês” (termo usado nas
localidades mencionadas para se referir a qualquer pessoa que não pertencia ao
grupo – provavelmente pessoa que vinha da freguesia) se aproximava e cruzava o
terreno em que estavam trabalhando. Era uma espécie de cobrança de pedágio por
deixar o freguês passar pelo local de trabalho dos escravos.
Os cantadores de
Ausente não se recordam dos cantos de trabalho. Eles se lembram apenas de um
canto de multa, que tem semelhança lexical com um dos cantos colhidos por
Machado Filho e que os moradores do Quartel do Indaiá já não recordam
mais. Apesar de relatarem a mesma
realização ritualística, os cantos de multa encontrados nas duas localidades
foram diferentes.
Já os cantos de
enterro são totalmente diferentes nas duas localidades. Apesar da prática
ritualística ser a mesma, ela foi melhor descrita pelo cantador de Ausente. De
todas as três práticas, a que perdurou por mais tempo foi a prática do enterro,
sendo registrada em 28 de Setembro de 2001, com a morte de “Bastião”, no Baú,
próximo ao Milho Verde.
O povoado do Baú
surgiu no meio do mato, no distrito de Milho Verde, município do Serro. Segundo
o Sr. Devanir, um dos moradores do Baú, havia uma fazenda na localidade onde
havia uma única casa de telha - a casa dos senhores - e que seus avós, que eram
trabalhadores dos senhores, compraram depois da abolição da escravatura. Seu
avô casou-se duas vezes, sendo ele fruto do segundo casamento. Parentes agora,
só primos. Já morreram os avós, os pais, os tios e tias. Até pouco tempo atrás,
para se chegar ou sair da localidade, só a pé ou em carro de boi. A estrada
chegou antes, mas, por falta de tráfego de carros, acabou-se. Quando adoecia
alguma pessoa, tinha que se fazer um “canapé de quatro” e colocá-la num carro
de boi. Muitas pessoas faleciam pelo caminho. Até 1993, ainda morriam moradores
do povoado por falta de atendimento médico, segundo ele, agora as coisas estão
melhores:
“Isso
pra nós era brabo. Agora não. Agora nós anda de pé aí até duas hora de viagem,
nós vamo lá e traz o carro.”
Neste panorama de
isolamento, formou-se uma comunidade de descendentes de escravos, onde se
preservou muito do dialeto africano[1]
bem como sua cultura e práticas sociais.
Após essa descrição inicial dos vissungos, de seus
usos e das comunidades onde eram realizados, passaremos a situá-los enquanto
prática social, analisando seu domínio discursivo. Na elaboração do quadro
teórico nos basearemos nos estudos de texto desenvolvidos por Koch (2002). Para
os comentários sobre obsolescência de línguas, que conduz
ao estudo sobre morte de língua, tomaremos como base os estudos de Dorian (1999, 2001, 2003*, 2004*).
O presente trabalho visa responder a seguinte questão:
O que mantém ou destrói uma face da cultura?
O
levantamento e a análise dos dados de campo, embasados nas influências
socioeconômicas e históricas das comunidades estudadas no decorrer desta
pesquisa, permitiram esboçar uma hipótese para explicar o desaparecimento de
uma parte da cultura – a língua – dos negros de Quartel do Indaiá e Ausente.
3. OS VISSUNGOS
3.1. Localização e contexto de uso dos
Vissungos
Os vissungos são cantigas que os negros cantavam no
trabalho de mineração de diamantes, “... para
aligeirar, para tornar o trabalho mais suportável”, segundo Machado Filho
em entrevista ao jornal Estado de
Minas (1985). Ele dizia que, ainda menino, enquanto convivia com o
trabalho de mineração, ouvia vissungos.
E se orgulhava de ter sido o introdutor da palavra vissungo nos dicionários:
“... é que fui eu quem
introduziu esta palavra “vissungo” nos dicionários. Já está dicionarizada pela
Enciclopédia do professor Antônio Houaiss. (...) E o Carlos Drummond já
registrou em um de seus poemas. Isto é uma grande alegria para mim.”
Segundo Feliciano Cangue, aluno de mestrado da UFMG,
falante nativo do dialeto umbundo, existe a palavra ocisungo [otSisuNgu] que significa ‘hino’ e que tem a forma plural como ovisungo
[ovisuNgu] significando ‘cantos’, ‘músicas’, ‘hinos’. No
dicionário recentemente lançado por Houaiss (2001) temos a seguinte definição
vissungo s.m. (sXX) etn mús MG
canto responsorial de negros nas lavras de diamantes em Diamantina (MG) com
palavras em português e línguas africanas F f. geral não pref.: viçungo ¤ etim
umbd. ovisungu, pl. de ochisungu ‘canto’, registra Nei Lopes.
São cantos ritualísticos em línguas africanas que
incorporam emoções de ordem social e religiosa.
Havia, dentre os
vissungos, grupos temáticos, conforme a coleta de Machado Filho: Padre-Nossos,
cantigas de multa, cantigas de rede e de caminho, gabando-se de qualidades,
cantos da manhã, canto do meio-dia, pedindo licença para cantar, etc.
Atualmente os
cantadores só reconhecem os vissungos de trabalho, de multa e de enterro.
Os vissungos eram
cantados atrelados a práticas sociais. No trabalho, por exemplo, como eram em
grande número, os escravos utilizavam a música para suavizar o esforço que
faziam para levantar a roda d’água. Era também no ambiente de trabalho que os
escravos multavam os fregueses. Com a abolição da escravatura, sem o trabalho
grupal que anteriormente era exigido, essas práticas foram se dissipando. Hoje
em dia é comum garimpar sozinho nestas localidades. Isto nos leva a compreender
o esquecimento dos cantos de trabalho e de multa sofrido pelos nossos
cantadores. Machado Filho (1985:66), faz referência a essas práticas:
“Os negros no serviço cantavam o dia inteiro. Tinham
cantos especiais para a manhã, o meio-dia e a tarde. Mesmo antes do sol nascer,
pois em regra começava o serviço alta madrugada, dirigiam-se à lua, em uma
cantiga de evidente teor religioso.
Registram as canções o momento em que o patrão, saindo
de casa, se dirigia para a lavra. Note-se ainda que os trabalhadores não
deixavam de rezar seu ‘Pade Nosso’, de que colhemos duas variantes.
(...) Vinda a abolição, os negros só queriam trabalhar
com patrão que não proibisse os vissungos. No tempo da escravidão, não
tinham direito de escolher senhor.
Já os cantos de
enterro, se ligavam a outra prática social. Era necessário levar o defunto que
morria nas localidades mencionadas para o cemitério dos respectivos distritos.
Como não tinham acesso a meios de transporte, como carro de boi ou similar,
eles levavam o defunto enrolado numa rede, amarrada em um pau, que era levada
nos ombros por dois homens, e os acompanhantes, que revezavam o carregamento,
iam cantando os vissungos ao longo do caminho. Hoje, com a pavimentação nestas
localidades, com a chegada do carro (às vezes, funerário), não se faz mais
necessária a realização desta prática social.
Segundo BOSI (1987:
336):
“o grupo é suporte da memória se nos identificamos com
ele e fazemos nosso passado. (...) As lembranças grupais se apóiam umas às
outras formando um sistema que subsiste enquanto puder sobreviver a memória
grupal. Se por acaso esquecemos, não basta que os outros testemunhem o que
vivemos. É preciso mais: é preciso estar sempre confrontando, comunicando e
recebendo impressões para que nossas lembranças ganhem consistência.”
Os vissungos não
estão desaparecendo somente pela morte dos cantadores conforme atestava Machado
Filho; as práticas sociais que incluíam esses
cantos foram dizimadas e com elas
a prática lingüística utilizada para suas realizações. Do ponto de vista sócio-histórico, a
estrutura social mudou.
3.2. Os Vissungos enquanto textos
Uma vez situados os
vissungos, tomemos como ponto de partida para as reflexões sobre os vissungos,
enquanto textos, alguns conceitos básicos que se fazem necessários para os
estudos sobre texto/discurso.
Em Koch (2002) temos
um conceito de texto para cada concepção que se tem de língua e de sujeito:
Ø Língua =
representação do pensamento ® Sujeito = senhor absoluto de suas ações e de seu dizer ® Texto = produto lógico do pensamento do autor ® Leitor/ouvinte = passivo, capta essa
representação mental juntamente com as intenções (psicológicas) do produtor.
Ø Língua =
código, mero instrumento de comunicação ® Sujeito = (pre)determinado pelo sistema ® Texto = simples produto da codificação de um
emissor a ser decodificado pelo Leitor/ouvinte = Passivo, precisa ter o conhecimento do código.
Ø Língua =
interacional (dialógica) ® Sujeito = ator/construtor social ® Texto = próprio lugar da interação ® Interlocutores[2]
= sujeitos ativos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no
texto.
Segundo a autora,
adotando-se esta última concepção – de língua, de sujeito, de texto – a
compreensão deixa de ser entendida como simples ‘captação’ de uma representação
mental ou como a decodificação de mensagem resultante de uma codificação de um
emissor, para ser uma atividade interativa altamente complexa de
produção de sentidos. “O sentido de um texto é, portanto, construído na
interação texto-sujeitos (ou texto-co-enunciadores) e não algo que preexista a
essa interação”.
Estas concepções vêm
nos mostrar, de uma maneira bastante clara, as relações que são feitas entre os
cantadores e o texto que cantam.
Conforme já foi dito anteriormente, os vissungos são cantados em língua
africana, se é que assim podemos falar. Os cantadores do Quartel do Indaiá,
como já estão muito distanciados desta língua, não sabendo o significado das
palavras, não articulando as palavras com proficiência, não alcançam mais o
código e, portanto, têm substituído palavras africanas por palavras do
português para lhes atribuir algum sentido. Podemos averiguar nos exemplos
abaixo:
Otê! Pade-Nosso cum Ave-Maria, securo camera qui
t’Angananzambê, aiô...
Aiô!... T’Angananzambê, aiô!...
Aiô!... T’Angananzambê, aiô!...
Ê calunga qui tom’ ossemá,
Ê calunga qui tom’ Anzambi, aiô!...
Transformou-se em:
Ê Pade Nosso com Ave Maria
segura o kane, Oi Dandaiola...
Ah ê...
Ô kanunga me chama gerê ê...ê[3]
Ô karan me chama gemá a...a...ê
Tê!
Tê...tê...tê...tê
Pade Nosso com Ave Maria
segura o kane, Dandaia...
Dandaiê....ê
Ê...ê...
Ô kundero di ê num tem
tempo
Oi vero o copo nuá tem
tempo
Aiê!
Ô Kaíconde...ê...ê...ê
Ô kalúnga me toma bebê[4]
Ô kalúnga me toma sambá...á
Êi...
Pê...rê...rê...rê
O mico kumbarano num tem
tempo
Ô pu kumbarano num tem
tempo
Ô...ê...ê...êi
kumbarauê... ê...ê... ê... êi
kumbará...
kumbarauê... ei... ê
kumbarauê... ê... êi.
Há uma tentativa de
buscar uma coerência no que estão cantando. Segundo Koch (2002), “também, a
coerência deixa de ser vista como mera propriedade ou qualidade do texto,
passando a dizer respeito ao modo como os elementos do contexto sociocognitivo
mobilizados na interlocução vêm a constituir, em virtude de uma construção dos
interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos”. Essa busca incessante em atribuir sentido a
tudo o que faz é uma característica do ser humano.
Esta reflexão sobre a
produção de sentido, segundo Koch (2002) esclarece que o processamento textual,
quer em termos de produção, quer de compreensão, depende, essencialmente, de
uma interação – ainda que latente – entre produtor e interpretador. Assim
compreendemos o recurso utilizado pelos cantadores do Quartel do Indaiá e
passamos a ver os vissungos de uma maneira diferenciada, partindo do
pressuposto de que não somos conhecedores do código e, portanto, a sua
realização entre o meio sócio-cultural de sua proveniência e o meio urbano
jamais poderá ser interpretada da mesma forma.
Quando Sr.Crispim nos embevece com o canto dos vissungos, podemos
admirar como um show, coberto de performances, mas infelizmente não
alcançamos o sentido que os signos podem trazer. Daí a necessidade de reflexão
sobre o contexto e suas concepções.
São várias as
definições atribuídas ao termo contexto. Malinowski (1923) propôs os termos
“contexto de situação” e “contexto de cultura”; Firth (1957) propôs “contexto
social”; Halliday e Labov também trabalharam sobre a noção de contexto numa
perspectiva sociológica e Hymes (1964) propôs o esquema SPEAKING que
caracteriza o contexto da seguinte forma:
S
– Situação: cenário, lugar
P
– Participantes: falante, ouvinte
E
– Fins, propósitos, resultados
A
– Seqüência de atos: forma de mensagem/forma de conteúdo
K
– Código
I
– Instrumentais: canal/formas de fala
N
– Normas: normas de interação/normas de interpretação
G
– Gêneros.
Partindo da
proposição de Hymes, podemos fazer uma análise mais detalhada dos vissungos
onde, passo a passo, passaremos a conhecer sobre sua contextualização:
S – Os vissungos sempre tiveram como
cenário o eixo social e cultural de descendentes de escravos, que viviam em
aldeias mais isoladas.
P – Quem participa dos cantos,
geralmente são os homens. Tanto no trabalho (nas catas de mineração), quanto
nos enterros.
E – No trabalho, eram entoados para
aliviar a carga. Os cantos de multa eram entoados com propósito de cobrar uma
espécie de pedágio dos estranhos que
passassem pelo seu local de trabalho. Nos enterros, eram entoados para
encomendar a alma do defunto.
A – São cantos sempre tirados por uma
pessoa que inicia e respondidos pelos demais cantadores do grupo. Quase sempre
fazem uso de repetições e usam como recursos alguns sons - aproximadamente
alveolar lateral flap - que são sons
tipicamente africanos. A velocidade de fala difere nos vissungos de multa (mais
rápidos) e nos vissungos de enterro (mais lentos).
K – O código usado, tanto pelos
moradores de Quartel do Indaiá como pelo morador de Ausente é em língua
africana. Mas, apesar de muitas palavras serem de origem kimbundu, não podemos
afirmar que todas sejam, uma vez que nem todas foram encontradas no dicionário
kimbundu-português de Assis Júnior[s. d.].
I – São sempre cantados. Nada é falado sem melodia. É
uma espécie de diálogo, em que um sempre tira e os outros respondem. O único
instrumento que se usa nos vissungos é a voz. No máximo, nas cantigas de multa,
eles faziam som com os próprios instrumentos de trabalho.
N – Dança-se nas cantigas de multa, mas
não se dança nas cantigas de enterro.
Algumas interjeições são usadas sempre nos inícios dos cantos e na
passagem de um canto para outro; tiradas pelo mestre e respondidas pelos demais.
G – Enquanto prática social, o vissungo é um gênero ligado a três domínios
específicos, com pessoas específicas de uma determinada cultura, de uma
determinada situação e geração de trabalho.
O contexto, como é
hoje entendido no interior da lingüística textual, segundo Koch (2002: 25),
abrange não só o co-texto, como a situação de interação imediata, a situação
mediata (entorno sociopolítico-cultural) e também o contexto sociocognitivo dos
interlocutores que, na verdade, subsume os demais. “Há um consenso relativo
sobre o fato de que, sob a noção de contexto, se oculta a hipótese de que
nenhuma análise lingüística, de qualquer ordem que seja, pode ser feita sem
levar em conta ou fazer intervir, em algum momento, elementos exteriores aos
dados ou fatos lingüísticos analisados”.
Digamos que os
vissungos têm o seu contexto interno e externo. No contexto interno seriam as
condições acima citadas, ao passo que o externo seria a organização social, que
permitiria a sua realização. Ambos se encontram diante de uma situação crucial:
enquanto, dentro do contexto interno, assistimos aos últimos cantadores que, se
não encontram o respondedor, não conseguem mais cantar; também, no contexto
externo, vimos a ausência das condições sociais propícias às realizações das
práticas.
Diante das afirmações
acima avançamos para um outro aspecto na análise dos vissungos, que é o seu
iminente desaparecimento. Os vissungos de trabalho e de multa desapareceram bem
antes dos vissungos de enterro. O trabalho de mineração não acabou, mas a prática de mineração
grupal, usando o negro como mão-de-obra, onde se juntavam pessoas à força para
trabalhar, essa sim deixou de existir, desagregando um grupo que tinha suas
práticas sociais específicas. Os
vissungos de enterro ainda foram entoados no final do ano de 2001 com o
falecimento de um morador de Baú.
Falar da quase
iminente morte dos vissungos é também falar sobre morte de língua.
4. CONCLUSÃO
O objetivo principal que norteou a presente pesquisa
foi descrever o gênero vissungo e analisar o seu desaparecimento, tendo em
vista estudos sobre morte de língua. Para tanto, observamos as interações
sociais dadas nos contextos de sua realização e analisamos as relações
existentes entre o desaparecimento dos vissungos e as alterações nas práticas
sociais, estabelecendo posterior comparação entre as realizações dos vissungos
nos anos de 1930/1940 e nos anos de 2001/2002. Aspectos textuais, contextuais,
sociais e culturais foram também considerados neste estudo.
Os vissungos, enquanto texto, podem ser o resultado de
um colapso lingüístico, de várias línguas africanas – sobressaindo o kimbundo –
mais a imperiosa fala dos senhores de lavra ou de terra. Os cantos, mais que
cantos, eram uma forma de linguagem em que os escravos se comunicavam
(situações que pudemos comprovar com os relatos sobre as práticas de multa e de
enterro – quando chamavam o inimigo para o cemitério).
Segundo Hymes (1977: 45) os modos de fala são usados
de uma maneira geral como um termo primitivo. Devem ser consideradas todas as
manifestações e derivações da linguagem, incluindo escritas, canções, assobios,
tambores, berrantes, etc.
No percurso,
constatamos a partir dos dados de campo e de sua análise integrada às
influências de ordem socioeconômica e histórica, que parte da cultura da
população negra das comunidades de Quartel do Indaiá e Ausente, a saber, sua
língua, encontra-se em franco processo de desaparecimento. As hipóteses
levantadas para responder à pergunta sobre o que mantém ou destrói uma face da
cultura, especificamente a língua, tiveram sua explicação a partir de fatores
predominantemente sociais.
Uma das possibilidades de trabalhar a manutenção da
cultura é através da arte. Ruth Monserrat no 11° COLE (Congresso de Leitura do
Brasil), em 1999, em Campinas, em reflexão sobre a morte de línguas indígenas
no Brasil contemporâneo, já apontava para a arte como um espaço de preservação
dessas línguas. Na ocasião, mencionou como exemplo CD’s de cantos rituais
indígenas, divulgados junto ao público jovem, universitário, dos grandes
centros urbanos brasileiros. A realização do espetáculo Macuco Canengue,
bem como a produção do filme de Pedro Guimarães, a partir desta pesquisa, foram
movimentos na direção dessa proposta de preservação da linguagem – amplo
sentido – dos povos que integram a cultura brasileira.
Já os fatores que contribuíram para a destruição da
cultura podem ser especificados conforme a seguir:
Primeiramente, a presença da Igreja Evangélica na
localidade coibindo as práticas religiosas, os rituais e as manifestações em
dialeto; a falta de contextualização para o garimpo em massa onde os negros
eram obrigados a trabalhar em grupo, vêm sendo impeditivas à sobrevivência da
língua.
A melhoria dos serviços de infra-estrutura nas
localidades, como a abertura de estradas públicas, permitindo a chegada do
carro funerário; realidade que deixa pouca margem à prática dos vissungos de
enterro.
O comportamento da sociedade hodierna, em que os
filhos já não se assentam com os pais como se costumava fazer, permitindo que
houvesse repasse da cultura (histórias, rituais, vissungos, crenças, etc.) aos
descendentes.
Outro fator responsável pela extinção da língua é a
falta de prestígio em cultivar sua cultura. Os filhos da população negra não
vêem interesse algum em estar cultivando suas origens. Não se interessaram em
aprender os vissungos, tampouco o dialeto. A língua padrão, ensinada como a
única possível para ascensão social, faz com que os membros das comunidades de
fala rejeitem a língua ancestral.
Dorian (1999) afirma que até mesmo onde a transmissão
da língua continua prosperamente, o declínio e prestígio da língua ancestral
podem conduzir a seu rápido desuso por pessoas mais jovens que têm acesso
direto à língua de expansão.
Segundo Schlafman, de uma maneira geral, os homens
preferem falar a língua que lhes permita se movimentar fora do seu grupo
imediato, não aquela que os retém na aldeia natal. Se é um péssimo negócio para
as línguas, pior ainda para as culturas ou religiões que só subsistiam graças à
língua. Com cada dia menos uso, o saber
pertencente aos velhos não está sendo repassado à próxima geração.
Sendo as práticas sociais realizadas em grupo, e tendo
havido a supressão destas práticas, restam aos cantadores as reminiscências que
trazem na memória. Para a realização desta pesquisa foi necessário trabalhar na
construção social da memória; reunir os irmãos Pedro e Paulo foi preciso para
possibilitar a criação de esquemas coerentes nas interpretações dos
vissungos. A falta do respondedor, que
dentro do contexto interno completa a seqüência de atos, impossibilita a
realização dos cantos. Quando o cantador os evoca, não vem o reforço, o apoio
contínuo dos outros cantadores. A participação grupal comum seria, portanto,
decisiva.
Debruçar sobre o estudo dos vissungos e descobrir que
já não são mais o legado de um povo rico em contribuições culturais e sim,
vestígios ancestrais de uma comunidade que por falta de dinâmica evolutiva das
práticas sociais prenuncia seu desaparecimento, nos coloca diante de uma
realidade sobre a qual pouco pode ser feito.
Por fim, vale sugerir
futuras pesquisas sobre os vissungos, que contemplem outros aspectos não
compreendidos no atual trabalho. O principal deles é relativo à semântica e a
fonologia entre as duas localidades pesquisadas, e dentro do próprio texto, visando
um melhor aprofundamento sobre o texto dos vissungos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] O termo dialeto africano utilizado neste
trabalho é apenas para se referir à linguagem dos vissungos como tudo o que não
é cantado em
português. Pode se tratar de variações dialetais de uma mesma
língua ou ser línguas diferentes. Esta expressão está sendo usada como os próprios
falantes comumente a usam.
* Textos ainda no prelo, cedidos pela autora para a
realização desta pesquisa.
[2] Aqui, já não mais leitor/ouvinte.
[3] Canto do Sr. Pedro.
[4] Canto do Sr. Paulo.
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