Com a devida venia, pelo grande respeito e consideração que muito mereceis, venho meus patrícios trazer-vos, num sucinto relato a inominável injustiça, que se pratica em nossa terra, em nome de uma lei frouxa, debaixo deste sol, cujos raios vivificam e aquecem-nos, sem distinção de classes, partidos e cor. Traz-me perante voz um direito claro e líquido. Em dias da semana passada foi recolhido arbitrariamente, mas, (pela vontade única do seu dono), ao curral do Conselho, meu ilustre burro, grande pensador e profundo filósofo de sua raça. Lestes a carta que, em linguagem singela, nos custou seu padecimento no “pátio dos milagres”, suplício menor que o de Prometeu. Foi o maior atentado que já se fez nesta terra, a ele e seus companheiros de trabalho, cujo único crime, foi o de prestar seu concurso, na destruição do capinal da cidade, fazendo uma concorrência séria á genial e gloriosa padiola. Em nome desta classe e, com procuração, impétro um habeas-corppus coletivo, como único remédio cabível na espécie, para que não sejam jamais, tolhidos na sua liberdade de locomoção tão prestativos cidadãos. Fundamentando-o, direi que a lei que lhes veda o livre trânsito é inexistente, e insubsistente. Abrigando sob sua proteção os animais amigos, com amplos poderes na cidade vergel, e incidindo sobre aqueles, cujos donos não pescam nas mesmas águas, sendo cobrada multa de uns e não de outros, cujos pedidos são futuros compromissos, torna-se uma lei de brinquedo, manobrada como automóvel, mas, quase sempre de marcha-ré. Tornando-se elástica, mole e de marcha-ré, não é lei, deixa de existir. Insubsistente, razão muito clara e óbvia, porque, daqui por diante, iremos morrer asfixiados pelo mato. Teremos o desprazer, caso se evite esta circulação de animais, de ver nossos filhinhos devorados pelas cangussús, engulidos por gibóias, mortos por jacarés. No Burgalhau, já se matam cobras a tiro. Diamantina se tornará uma floresta iluminada. A anulação desta lei se impõem, como medida de garantia de vida. Devíamos até calçar alguns animais com pneumáticos e soltá-los nos telhados.
Vista do Burgarlhau e o bairro Rio Grande - Acervo Zé da Sé
O da Câmara não apresentaria mais aquelas moitas de capim. Além de tudo, sento os burros as melhores enxadas municipais, não se revoltariam, em amarrar-lhes nas caudas umas vassouras, realizando, assim, o tipo do capinador e varredor ambulante gratuito. A despesa era só com a padiola. As vacas se comprometem a trazer, á noite, lanternas nos chifres e não estragar bananeiras. E provado como está, a invalidez e aplicação irregular da lei, devemos tomar a nova Bastilha, o curral do Conselho, dar saída a todos os animais que ali se acham, a bem da limpeza e decência das ruas. É uma legítima Bastilha, onde só entram as alimarias que não são da “fuzarca”. Creio que tudo interpretado de modo cabal e satisfatório, a necessidade de uma classe, na pessoa de meu constituinte, uma das maiores glórias da animalidade brasileira, um dos mais intrepidos e valorosos desbravadores de estradas ruins, que servem todos os nossos distritos, equilibrista célebre, porque salta de pedra em pedra, levando em seu lombo cincoenta e dois quilos, pertencentes ao mais insignificante representante da medicina diamantinense, aguardo e espero.
Salus, Tolle, Lege – Habeas-Corpus , Justiça, PAS, pág. 2, ano XXVIII, nº 41, Diamantina, 12 de maio de 1929.
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